segunda-feira, 30 de novembro de 2020

LENDA - A fraga do ovo


A Fraga do Ovo


Essa Fraga do Ovo tem uns buracos por baixo, que era certamente onde os antigos escondiam as suas coisas. 
Aqui há uns anos atrás, talvez há mais de cinquenta, havia um taberneiro aqui em Carvalho de Egas, chamava-se Felisberto e já tinha dinheiro, e vai um habilidoso qualquer, não sabem quem, escreveu-lhe uma cartinha pra ir pôr lá, num desses buracos, doze contos de réis, se não que o matavam.

Coitado, o homem atormentou-se. Não sabia o que havia de fazer à vidinha dele. Não sabia se havia de lá ir pôr o dinheiro, ou como é que havia de fazer, pois os gaijos diz que o matavam. Então, deu-lhe na cabeça, mandou lá dois guardas. Eles foram lá e não viram ninguém.

Mas o homem não teve mais descanso, porque tornou a receber outro aviso pra ir lá pôr o dinheiro, mas que tinha de ir só. Que pusesse lá o dinheiro e que viesse embora. Se não, que o matavam.

E como ele era taberneiro, era fácil, davam-lhe uma facada ou um tiro e matavam o homem. Ele então foi lá pôr o dinheiro e veio-se embora. 

Passado um dia ou dois, tornou a lá ir... e o dinheiro estava lá. Trouxe-o pra casa. Não lhe queriam fazer mal, era só para lhe meterem medo.










domingo, 29 de novembro de 2020

ÁLVARO SALEMA – Stendhal (VI)



ÁLVARO SALEMA
(Viana do Castelo, Portugal, 1914 - 1991)
Ensaísta, crítico literário

***

STENDHAL (VI)

(continuação)


Como romancista, a obra de Standhal situa-se numa surpreendente diversidade de sentidos, entre a literatura do século XVIII, em que colheu muito da sua ideologia estética e moral sobre a natureza humana, o romantismo que lhe comunicou a exuberância e o fogo, e um naturalismo antecipado pelo vigor com que rebusca as fatalidades temperamentais, a fisiologia dos sentimentos e a verdade dos costumes.

O romance, como ele mesmo disse «c´est un miroir que l´on promène le long d´un chemin».

É curioso notar que alguns críticos modernos – aliás sem satisfação nenhuma pelo facto – consideram as suas concepções, sobretudo em história literária, muito semelhantes às do materialismo dialéctico.

(Fim)


in “Mundo Literário” - 1946




sábado, 28 de novembro de 2020

JOSÉ EMILIO PACHECO - Indesejável



JOSÉ EMILIO PACHECO
(Cidade do México, México, 1939 – 2014)

***

Além de poeta, escritor, jornalista cultural e ensaísta, consagrou-se como brilhante tradutor, director e editor de diversas publicações culturais.
Membro da “Geração dos Cinquenta”, a sua poesia fala da beleza da vida quotidiana e do tempo.
Um dos seus poemas, Alta Traição, foi, é, será uma das maiores referências da cultura mexicana para compreender o seu país.

***
INDESEJÁVEL

O guarda não me deixa entrar.
Já passei do limite de idade.
Provenho de um país que já não existe.
Meus documentos não estão em ordem.
Falta um carimbo.
Necessito outra assinatura.
Não falo o idioma.
Não tenho conta no banco.
Fui reprovado no exame de admissão.
Cancelaram minha vaga na grande fábrica.
Me desempregaram hoje e para sempre.
Careço inteiramente de influências.
Estou neste mundo há muito tempo.
E nossos amores dizem que já é hora
de calar-me e meter-me no lixo.



Tradução: António Miranda 


sexta-feira, 27 de novembro de 2020

ANTÓNIO FELICIANO DE CASTILHO - Os Treze Anos




ANTÓNIO FELICIANO DE CASTILHO
(Lisboa, Portugal, 1800 - 1875)
Escritor, poeta, pedagogo

***

Foi o homem de letras dos mais discutidos e apreciados do seu tempo.

Ficou cego quando tinha apenas 6 anos de idade. O que não o impediu, mesmo assim, de se vir a formar pela Universidade de Coimbra, no ano de 1822.

Durante a sua vida teve a oportunidade de atravessar a vigência de três escolas literárias: o arcadismo, o romantismo e o realismo. 

E foi, exactamente, com o levedar do realismo, que teve origem a célebre Questão Coimbrã, provocada pela carta do Bom senso e bom gosto, da autoria de Antero de Quental, estimulado por Teófilo Braga, e que tão profundamente viria a dividir os mais célebres homens de letras do tempo.


in “Dicionário Literatura Portuguesa” (excerto)


***
OS TREZE ANOS
(Cantilena)

Já tenho treze anos,
que os fiz por Janeiro:
Madrinha, casai-me
com Pedro Gaiteiro.

Já sou mulherzinha,
já trago sombreiro,
já bailo ao domingo
com as mais no terreiro.

Já não sou Anita,
como era primeiro;
sou a Senhora Ana,
que mora no outeiro.

Nos serões já canto,
nas feiras já feiro,
já não me dá beijos
qualquer passageiro.

Quando levo as patas,
e as deito ao ribeiro,
olho tudo à roda,
de cima do outeiro.

E só se não vejo
ninguém pelo arneiro,
me banho co'as patas
Ao pé do salgueiro.

Miro-me nas águas,
rostinho trigueiro,
que mata de amores
a muito vaqueiro.

Miro-me, olhos pretos 
e um riso fagueiro,
que diz a cantiga
que são cativeiro.

Em tudo, madrinha,
já por derradeiro
me vejo mui outra
da que era primeiro.

O meu gibão largo,
de arminho e cordeiro,
já o dei à neta
do Brás cabaneiro,

dizendo-lhe: «Toma
gibão, domingueiro,
de ilhoses de prata,
de arminho e cordeiro.

A mim já me aperta,
e a ti te é laceiro;
tu brincas co'as outras
e eu danço em terreiro».

Já sou mulherzinha,
já trago sombreiro,
já tenho treze anos,
que os fiz por Janeiro.

Já não sou Anita, 
sou a Ana do outeiro;
Madrinha, casai-me
com Pedro Gaiteiro.

Não quero o sargento,
que é muito guerreiro,
de barbas mui feras
e olhar sobranceiro.

O mineiro é velho,
não quero o mineiro:
Mais valem treze anos
que todo o dinheiro.

Tão-pouco me agrado
do pobre moleiro,
que vive na azenha
como um prisioneiro.

Marido pretendo
de humor galhofeiro,
que viva por festas,
que brilhe em terreiro.

Que em ele assomando
co'o tamborileiro,
logo se alvorote
o lugar inteiro.

Que todos acorram 
por vê-lo primeiro,
e todas perguntem
se ainda é solteiro.

E eu sempre com ele,
romeira e romeiro,
vivendo de bodas,
bailando ao pandeiro.

Ai, vida de gostos!
Ai, céu verdadeiro!
Ai, Páscoa florida,
que dura ano inteiro!

Da parte, madrinha,
de Deus vos requeiro:
Casai-me hoje mesmo
com Pedro Gaiteiro.



in “Escavações Poéticas” 




quinta-feira, 26 de novembro de 2020

MILLÔR FERNANDES – Poeminha de Louvor ao Strip-tease Secular



MILLÔR FERNANDES
(Rio de Janeiro, Brasil, 1923 - 2012)
Escritor, poeta, humorista

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POEMINHA DE LOUVOR AO STRIP-TEASE SECULAR


Eu sou do tempo em que a mulher
nem mostrava tornozelo;
que apelo!

Depois, já rapazinho
vi as primeiras pernas de mulher
por sob a curta saia;
que gandaia!

A moda avança,
a saia sobe mais,
mostrando já joelhos
lupercais!

As fazendas com os anos,
se fazem mais leves, e surgem figurinhas, pelas ruas,
mostrando as lindas formas quase nuas.

E a mania do sport
trouxe o short.

O short amigo,
que trouxe consigo,
o maiô de duas peças.

E logo, de audácia em audácia,
a natureza, ganhando terreno,
sugeriu o biquíni,
o maiô, de pequeno, ficando mais pequenos,
não se sabendo mais,
até onde um corpo branco,
pode ficar moreno.

Deus, a graça é imerecida,
mas dai-me ainda
uns aninhos de vida!



in “Pif-Paf”






quarta-feira, 25 de novembro de 2020

ÓPERA - AS BODAS DE FÍGARO




AS BODAS DE FÍGARO
Ópera em quatro actos composta por Wolfgang Amadeus Mozart. Libreto de Lorenzo da Ponte, com base na peça homónima de Pierre-Augustin Caron de Beaumarchais. Estreou em Viena, em 1 de Maio de 1786.
*
A maior ópera cómica de Mozart centra-se nas intrigas que rodeiam a próxima boda de Fígaro (criado do conde Almaviva). O conde tenta seduzir Susanna antes de ela casar, mas Fígaro consegue exceder o patrão em esperteza. 
Ao ouvir esta obra pela primeira vez, o imperador austríaco José II disse a Mozart que ela tinha «notas a mais».


in “Óperas Imortais”






terça-feira, 24 de novembro de 2020

TITO LÍVIO – Historiador



TITO LÍVIO
(Pádua, Itália, 59 a.C. – 17 d.C.)
Historiador

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A sua obra principal é História de Roma (Ab Urbe condita libri) que conta a história de Roma desde a sua fundação (por volta de 753 a.C.) até a morte do imperador romano Nero Cláudio Druso (9 a.C.).

Esta obra, composta de 142 livros, dos quais restam apenas 35, é uma das principais fontes históricas para o estudo da Roma Antiga (Monarquia, República e fase inicial do Império).

Tito Lívio celebra o passado de Roma e transforma a história num monumento patriótico.




in "Dicionário Larousse"






segunda-feira, 23 de novembro de 2020

ANA HATHERLY - A Memória é um Silêncio que Espera



ANA HATHERLY
(Porto, Portugal, 1929 – Lisboa, 2015)
Escritora, artista plástica

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A MEMÓRIA É UM SILÊNCIO QUE ESPERA

O património do silêncio. Os livros acumulam-se pela casa. Cobrem as paredes, enchem as prateleiras dos armários. Aguardam-nos calados com suas páginas apertadas onde o pó e a humidade se infiltram. Disciplinados, exibem apenas o seu dorso curvo coberto de pele, ou então magro, estreito, de papel. A memória é um silêncio que espera, uma provação da paciência.


in "Tisanas"




domingo, 22 de novembro de 2020

ÁLVARO SALEMA – Stendhal (V)



ÁLVARO SALEMA
(Viana do Castelo, Portugal, 1914 - 1991)
Ensaísta, crítico literário

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STENDHAL (V)

(continuação)


Stendhal morreu subitamente de apoplexia numa rua de Paris em 1842. 

Só posteriormente surgiram, à medida que os seus admiradores se multiplicavam, as obras autobiográficas como Souvenirs d´egotisme, La vie de Henri Brulard e Lucien Leuwen, bem como a correspondência, que é uma extraordinária fonte de impressões, de ironias, de notas súbitas e finas sobre a vida e os homens.

Stendhal morreu sem conhecer êxito que de longe alcançasse a força admirável da sua obra. Ele mesmo o reconhecia, confiando no futuro: «Je mets un billet à la loterie dont le gros lot se réduit à ceci: être lu en 1935».

(continua)
 


in “Mundo Literário” - 1946



sábado, 21 de novembro de 2020

THOMAS HARDY - O Outro




THOMAS HARDY
(Reino Unido, 1840 – 1928)
Poeta, novelista

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O OUTRO

Eis aqui o chão antigo,
tão gasto e liso de andado.
Eis aqui limiar amigo
que mortos pés hão cruzado

Na cadeira ela sentada
para o lume se sorria;
e dele a vida brincada
no fogo se consumia.

Criança, em sonhos dancei;
feliz o dia passou,
dourado brasão de um rei.
Mas nenhum de nós olhou.





sexta-feira, 20 de novembro de 2020

ANTÓNIO MARIA EUSÉBIO, “O CALAFATE” – Já fui Operário Artista



ANTÓNIO MARIA EUSÉBIO, “O CALAFATE”
(Setúbal, Portugal, 1819 – 1911)
Poeta, cantador

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Exerceu na sua terra natal a profissão de calafate, ficando conhecido por Cantador de Setúbal, Eusébio Calafate ou simplesmente Calafate.

Não sabia ler, mas improvisava com a maior facilidade as tradicionais décimas a mote, muitas das quais ele próprio cantou durante a mocidade acompanhando-se com guizos nos pulsos. Quando a idade o impediu de continuar a trabalhar, os amigos fizeram publicar os seus versos em folhetos, vendidos em Setúbal, Palmela, Azeitão, Alcácer, tornando-se assim célebres os seus versos. Para ganhar a vida percorria feiras e romarias a cantar e a vender folhetos, à semelhança do que sucedeu com o seu congénere algarvio António Aleixo.

Os versos de Calafate foram recolhidos em livro, em 1901 – Versos do Cantador de Setúbal - com prefácio de Guerra Junqueiro.

Extremamente original e profundamente satírica, a sua poesia constitui, além do mais um precioso repositório da vida setubalense oitocentista, uma vez que numerosas das suas décimas se satirizam ou simplesmente narram episódios do quotidiano, desde as lutas liberais até aos progressos urbanos da cidade.

A popularidade da sua poesia contribuiu largamente para fazer de Setúbal no século passado e nas primeiras décadas do século XX um significativo centro de criação fadista.


Fonte: “Histórias do Fado” de Maria Guinot, Ruben de Carvalho e José Manuel Osório.

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JÁ FUI OPERÁRIO ARTISTA

Mote

Já fui operário artista
Agora, já pouco valho;
Comprem-me algum papelinho,
Em paga do meu trabalho.

Glosa

Já gozei a mocidade
Esse bem tão precioso,
Fui homem laborioso
E trabalhei de vontade.
Já servi na sociedade,
Já fui homem moralista,
O meu vulto já fez vista
No seio das classes pobres,
Já fui nobre ao pé dos nobres,
Já fui operário artista.

Já tive as mãos calejadas
Do muito que trabalhei,
Meus braços atormentei
Com ferramentas pesadas.
Tive horas amarguradas,
Joguei, rasguei o baralho,
Hoje apanho algum retalho
Que a ambição deixa cair,
P'ra pouco posso servir,
Agora já pouco valho.

Até ando ameaçado
De fome ainda passar,
Por a um homem estimar,
A quem estou obrigado.
Sou pobre velho e cansado,
Estou no fim do meu caminho;
Porque sou do Zé povinho,
Não devo ser esquecido,
Seja qual for o partido,
Comprem-me algum papelinho.

Nunca fiz ruins papéis
Nem andei pondo cartazes
Nem atirei aos rapazes
Com moedas de dez réis.
Falem, pois, os infiéis,
Chamem-me velho, espantalho;
Como, agora já não valho
De tabaco uma pitada,
Levo alguma bofetada
Em paga do meu trabalho.





quinta-feira, 19 de novembro de 2020

GONÇALO ANES BANDARRA - Trovador



GONÇALO ANES BANDARRA
(Trancoso, Portugal, 1500 – 1556)
Trovador

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Quase tudo o que se sabe com certeza da vida de Gonçalo Anes Bandarra consta do seu processo inquisitorial, publicado por Teófilo Braga na sua História de Camões (Porto, 1873). 

Ele deve ter nascido por volta de 1500 na vila de Trancoso, que foi também terra natal de outro autor popular seiscentista: Gonçalo Fernandes Trancoso, que cativou muitas gerações de leitores portugueses com os seus edificantes Contos de Histórias de Proveito e Exemplo.

Antes da publicação do seu processo, julgava-se que ele era pobre e de origem muito modesta. Mas na sua declaração ao Tribunal lemos que «fora rico e abastado, mas que queria mais sua pobreza em dizer a verdade e o que cumpria à sua consciência, que não dizer outra cousa». 

Também se julgava que o sapateiro não sabia ler nem escrever, mas que ditava as suas profecias ao Padre Gabriel João de Trancoso, o qual seria o seu amanuense, tal como o fora Baruch do profeta Jeremias. 

Era assim que se interpretava uma das suas trovas (aliás, inautênticas) do seu chamado «Terceiro Corpo»:

Eu componho, mas não ponho
as letrinhas no papel,
que o devoto Gabriel
vai riscando quanto eu sonho.

Hoje se sabe que Bandarra não era nenhum analfabeto. Ele mantinha correspondência com várias pessoas do Reino, entre as quais se achavam figuras importantes.

As suas profecias rimadas não tardaram a encontrar leitores na capital do Reino. Os cristãos-novos, que já antes o tinham consultado como uma espécie de rabi, passaram agora a venerá-lo como um profeta solidário com eles nas suas esperanças messiânicas. 

Sabemos que Bandarra, por duas vezes, se deteve por algum tempo em Lisboa ( 1531 e 1539), onde era muito procurado pela gente da nação. Tal alvoroço devia despertar as suspeitas da Inquisição recém-estabelecida. 

Bandarra foi preso e levado para Lisboa (1540). A Mesa ouviu diversas testemunhas e impôs-lhe (3 de Outubro de 1541) um castigo relativamente brando: o de abjurar solenemente as suas trovas na procissão do auto-da-fé do dia 23 do mesmo mês. Pela sentença se pode ver que Bandarra não foi acusado de judaísmo, nem sequer passava por cristão-novo. O que se lhe imputava era causar alvoroço entre os cristãos-novos com as suas trovas, que eles tendiam a interpretar em sentido judaico.


Fonte: “Instituto Camões” - José van den Besselaar -Professor jubilado da Universidade Católica de Nijwegen (Holanda).


 ***

TROVAS

Todos os lugares planos
Por terra serão prostrados,
Muitos males, muitos damnos
Haverà pellos peceádos.

As Serras se habitarão
E os Oiteiros mais altos,
Muitas Gentes sahirão
Outros andarão em Saltos.

Andarão como pasmados
Chorando pellos caminhos,
De suas terras lançados
De parentes, e vesinhos.

Então não haverà amigos
Nem pay que por filho seja,
O mais seguro abrigo
Serà acolherse à Igreja.

Nesses tempos os meninos
Ainda que innocentes,
Terão tãobem accidentes
Muito fora dos Caminhos.

Haverà peregrinaçoens
Mortes sem conto de dura,
Males fogos devisoens
Só Deos lhe póde dar cura.

Os póvos hão de alintar
As culpas dos seos Monarchas,
Que sem nenhum estudar
São Letràdos, e Patriarchas.