sexta-feira, 12 de junho de 2015

Vivemos numa Paz de Animais Domésticos

 
 
 
 
 
 
 

Miguel Torga (São Martinho da Anta, Portugal, 1907 – Coimbra, Portugal, 1995). Toda a sua obra está intensamente ligada à sua terra natal.

 

 
Palavras de Miguel Torga:
“Em Portugal, as pessoas são imbecis ou por vocação, ou por coacção, ou por devoção.”

 

 
Vivemos numa Paz de Animais Domésticos

 

Uma cobra de água numa poça do choupal, a gozar o resto destes calores, e umas meninas histéricas aos gritinhos, cheias de saber que o bicho era tão inofensivo como uma folha.

Por fidelidade a um mandato profundo, o nosso instinto, diante de certos factos, ainda quer reagir. Mas logo a razão acode, e o uivo do plasma acaba num cacarejo convencional. Todos os tratados e todos os preceptores nos explicaram já quantas espécies de ofídios existem e o soro que neutraliza a mordedura de cada um.

Herdamos um mundo já quase decifrado, e sabemos de cor as ervas que não devemos comer e as feras que nos não podem devorar.

Vivemos numa paz de animais domésticos, vacinados, com os dentes caninos a trincar pastéis de nata, tendo aos pés, submissos, os antigos pesadelos da nossa ignorância.

Passamos pela terra como espectros, indo aos jardins zoológicos e botânicos ver, pacata e sabiamente, em jaulas e canteiros, o que já foi perigo e mistério. E, por mais que nos custe, não conseguimos captar a alma do brinquedo esventrado.

O homem selvagem, que teve de escolher tudo, de separar o trigo do joio, de mondar dos seus reflexos o que era manso e o que era bravo, esse é que possuiu verdadeiramente a vida e o mundo. Diante duma natureza inteira e una, também ele tinha necessariamente de ser inteiro e uno. Sem amigos e sem vizinhos, sozinho contra as árvores e contra as sombras, ele era uma fortaleza em si, tendo na própria pele as ameias.

Que totalidade a de um ser que não pode confiar senão em si! Socialmente, seremos assim (e somos, certamente) mais fáceis de conduzir, mais úteis, mais progressivos. Mas, individualmente, a que distância estamos de um homem das cavernas! Que tamanho o dele, a caçar bisões, e que pequenez a nossa, a ganhar taças em torneios de tiro aos pombos!

O nosso gritinho de horror diante de qualquer lesma dá bem a perdição a que chegámos. Civilizámo-nos, mas à custa da nossa mais profunda integridade, dispersando-nos nas coisas que fomos desvendando.

Na cobra de hoje ninguém viu sinceramente veneno ou morte. Vimos todos, sim, o manual que aprendemos no liceu. E o estremecimento das meninas histéricas, eco delido do uivo profundo de pavor e de incerteza dos nossos antepassados, foi dum ridículo tal que respingou outros aspectos e outros recantos da existência. Que espécie de sinceridade profunda, de lealdade incontroversa, haverá, por exemplo, em acreditar em Deus com a bomba atómica na mão?

É bem que o homem faça todas as experiências, inclusivamente consigo. Que liberte a energia das pedras e se liberte também a si de todas as clausuras. Mas os instintos? Poderá, na verdade, ele viver desfalcado dessa força que o fechava como um punho e lhe dava uma coesão igual à dos átomos antes de serem bombardeados?

Pelo caminho que levamos, um dia virá em que tudo em nós será consciência, compreensão e sabedoria. Mas nessa mesma hora estaremos desempregados no mundo. Todos saberemos resolver a equação da vida na ardósia negra onde dantes eram as trevas da nossa virgindade criadora, mas talvez já não haja vida, então.

 
 
Miguel Torga, in "Diário "

Imagem: Pintura de Frederick Richard Lee (Reino Unido, 1798-1879).

 
 

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