quarta-feira, 15 de junho de 2016

EXISTENCIALISMO PARA USO DOMÉSTICO





EXISTENCIALISMO PARA USO DOMÉSTICO


Entrevistando há semanas o romancista e filósofo Jean- Paul Sartre, porventura o autor mais discutido do momento, o jornalista disparava a certa altura a pergunta inevitável:

- E o existencialismo?

Ao que Sartre, fitando o entrevistador com falsa ingenuidade, respondeu apenas:

- L´existencialisme? Connais pas…

Também nós, perante a frequência com que os jornais portugueses deram em utilizar o existencialismo, temos vontade de dizer: Nunca ouvi falar em tal coisa!

Não há cronista parisiense «en mal» de assunto, que não deite a mão à providencial palavra. Como eles rejubilam! Um novo «ismo»! Dizer mais disparates sobre o «surréalisme?» - Não: esse já é velho, tem mais de vinte anos. («E não morre, será bom haver prudência, quem sabe se ainda veremos Breton na Academia?» pensa o cronista.

Mas o existencialismo, que mina! Tanto mais que existência, toda a gente sabe o que é, pois não é? Está mesmo a ver-se… Sabendo-se além disso que Sartre intitulou um dos seus romances «A náusea», e é, por outro lado autor da uma tese filosófica sobre «O Ser e o Nada» - o cozinhado está pronto! Existencialismo, portanto, é uma filosofia … do enjôo! «A porca da vida, etc…»

O ser – não é nada – perdão! – o ser é o nada… Em conclusão: uma filosofia sem idealismo nenhum, uma filosofia feia, que reduz tudo a …cisco.

Os nossos jornais têm o condão de nos pôr em contacto com a cidade mais inteligente do mundo pela de quantos anónimos «fazem pela vida» nas vielas da vida literária da Cidade da Luz.
É a esses ilustres desconhecidos que a nossa imprensa diária pede a luz sobre a vida intelectual do mundo, e a de Paris em primeiro lugar.

Pedir a colaboração de autores cuja opinião conta, é acatada e merecidamente apreciada? Livra! Eram capazes de escrever artigos sérios, que sensaboria! Que diriam os leitores, pensa o director, habituados a que lhe cozinhem tudo em picado de fácil digestão?

Então vão-se buscar os senhores perfeitamente anódinos, que devem ter muita raiva a todos os autores responsáveis, e que só pensam em «fazer graça» com as coisas que para os outros são sérias. Vá pelo picado de existencialismo… E o público come… e quando alguém lhe vier dizer o que é realmente o existencialismo, arrisca-se a um encolher de ombros de pessoa bem informada: 

«Já li outro dia…É aquela filosofia ignóbil que diz que a vida dá náuseas. Afinal aqueles franceses continuam desmoralizados. De um bom Bourget é que nós precisamos…»



in “Mundo Literário”: semanário de crítica e informação literária, científica e artística – de 1 de Junho de 1946.

Imagem: pintura de Gustavo Boggia (Argentina)


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