segunda-feira, 26 de setembro de 2016

CONFLITO ENTRE A POESIA LÍRICA PORTUGUESA E O CARDEAL PATRIARCA DE LISBOA





CONFLITO ENTRE A POESIA LÍRICA PORTUGUESA E O CARDEAL PATRIARCA DE LISBOA


Entre a poesia lírica portuguesa e o sr. cardeal patriarca está a ponto de rebentar um grave conflito, que decerto perturbará as boas relações em que até hoje têm permanecido a igreja e as consoantes.

É o caso que, segundo uma revelação feita, há dias, pelo Diário de Notícias, o chefe da Igreja lisbonense não consente que os anjos do patriarcado tenham mais de dez anos de idade, ao passo que os poetas líricos só os admitem de idade superior a quinze, havendo mesmo alguns que mais os apreciam à proporção que eles vão sendo mais durinhos. 

Há mesmo quem considere, como Balzac, que os anjos só se podem julgar completamente feitos aos trinta anos.

Não desesperamos de ver a Igreja chegar a um acordo com a poesia no interesse comum. Se se fosse a cumprir rigorosamente à letra a provisão do austero prelado, a própria clerezia do patriarcado seria a primeira a achar-se em graves embaraços, por ter de despedir os anjos de maior idade, que hoje estão ao serviço da Igreja.

E depois como seria triste um trovador ter amanhã de pôr o seguinte comunicado nos jornais, dirigido ao arcanjo dos seus sonhos…

O teu nome, anjo de céu,
Foi uma estrela cadente,
Que às bicadas feneceu
Dos corvos de S. Vicente!

Já não és anjo; eu chamar-te,
Seria evocar o abismo!
Em ti leio, em qualquer parte
A certidão do baptismo!...

Sê tu anjo de inocência,
E eu seja o próprio Petrarca,
Não o quer sua Eminência
O cardeal Patriarca!...



in “O António Maria” – jornal de humor político, editado e dirigido por Rafael Bordalo Pinheiro (1846 - 1905) – edição de 2 de Outubro de 1879.

Imagem: pintura do alemão Egon Schiele (1890-1918)

Sem comentários:

Enviar um comentário