quarta-feira, 2 de novembro de 2016

ANTÓNIO RAMOS ROSA – VIAGEM através duma nebulosa




António Ramos Rosa (Faro, Portugal, 1924 – Lisboa, 2013).

Foi poeta, tradutor e desenhador.


             VIAGEM
através duma nebulosa


Noite
rã oblíqua
ó toda olhos à flor da névoa
o trilo move-se perde-se repete-se pisca como a estrelinha
o hálito da lua
orienta-me numa nebulosa
de constelações tranquilas

Que aéreo e estático silêncio
harmonia de pálpebras e pupilas
a redondez das estrelas foi feita pelas minhas mãos navegadoras
a poalha cintilante e fluída
dos céus
corre no meu sangue
ondas e barcas contradançam
substituem-se umas às outras

Os grandes animais silenciosos da terra
Sonham com um pássaro de barro
A memória reencontra o seu palácio de homens
A torre emerge do menino

Além mais para além
que calma de navios
sobre um porto sem nome sobre um cais
qualquer
transporto por contágio o sonha da rapariga
à janela do mundo

O adolescente que fui encontra a sua noiva
que sortilégio de mãos e tranquila voz antiga
de inexplorados sonhos
que confiança interplanetária
me leva para além dos contactos visíveis
chego ao limite onde a aurora ainda dorme

Os rios torceram-me todas as hesitações
as montanhas reacenderam toda a minha coragem
sobre ventres de grávidas fêmeas silenciosas
retomei o gosto de distribuir meus sonhos
nova moeda de futuros seres
os lisos cavalos da bruma
lançam-me a rosa do seu bafo escuro
é bem o cheiro da madrugada

Sobre todos os mortos de que me nutro em segredo
desenha-se a rapariga da revolta do sol
a tradição de seus braços
é uma carícia de futuro
presente sangrando em cada poro
17 milhões de mortos comprovam a grávida linha ascensional

Todos os jovens mortos
Correm no fogo candente das tuas veias consteladas
ó eterna rapariga
o rumor que faz a amizade
através dos países submersos
o sussurro claro germinando da descoberta incessante
eis o ritmo do teu coração

Dia a dia o teu grávido ventre se estende planície
dia a dia os homens te forjam na consciência renovando-se
dormes agora
a tua cabeleira de horizontes
o fulvo ondear do teu corpo de bandeira
acena-nos um novo passo em cada espera forçada
as sombras do martírio as mil e uma moscas do carnaval pútrido
em vão tentam sugar o cadáver que resiste
o cadáver que resiste
não chegam a formar a sombra que oculta o esplendor
que ressalta em cada face humilde

O arsenal do estupro lento
as orquestras dos caos
os benfeitores dos monstros
em vão tentam amortecer o dinamismo da paisagem
as máquinas delicadas dos turistas
acenam bom senso
em vão
… … … … … … … … … … … … … … … … … … … … … … … … … …

A redondez das estrelas
é um apelo às minhas mãos
as minhas mãos navegadoras correm em arrepios teu corpo em formação

Deito-me no horizonte
tudo se faz mais claro




Imagem: desenho de António Ramos Rosa


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