sexta-feira, 8 de junho de 2018

YVETTE CENTENO – Os Abutres


YVETTE CENTENO
(Lisboa, Portugal, 1940)
Professora, poetisa, dramaturga, tradutora

***

Os Abutres

I

Morre um poeta
cai um avião
os abutres
limparão os corpos
deixando os ossos
espalhados
na montanha;
roubarão ao poeta
as palavras não-ditas
que ele fora amortalhando
como se adivinhasse

Bastaria morrer
para que se abrissem
as páginas dos jornais
com o seu rosto cansado

Poderá ver de longe
com um sorriso amargo
alguma correria aos livros
mais antigos, de que ele
dizia irónico são apenas folhetos…

II

Eu guardo para mim
os primeiros encontros
no café Gelo, ao Saldanha,
diante da bica
nesses anos sessenta, onde
o sucesso pouco importava e
apenas se falava do livro
entregue para publicação
ou de algum outro
que se estivesse a ler

Vivia-se entre amigos,
era o Carlos Ferreiro quem fazia
as vinhetas e as ilustrações
que o Vítor Silva Tavares lhe pedia
para as edições & Etc.
Os seus desenhos eram ampliação
da palavra mais negra, mais oculta
batiam no coração

E anos mais tarde, já depois
da Revolução de Abril,
era com o Alberto Pimenta
outro poeta, um amigo de sempre,
que se discutia o interesse
da tão aguardada nova escrita:
escassa e rara, fazia-se politiquice,
não se lia, e era assim que o poeta
entristecia

Pego ao acaso num desses “folhetos”
que ele sabia enviar-me, sabia que eu gostava
fui sempre fiel e lia –
desde A Colher na Boca não mais me separara

E aqui o tenho e leio,
um deles,
as folhas amareladas de
O Corpo O Luxo A Obra:
reparo que há lá dentro uma carta
de que não me lembrava,
estamos em 1978 e ele escreve a agradecer
algo que eu lhe tinha enviado:
uma carta gentil, caligrafia miudinha,
de letra bem desenhada…

Para O Corpo O Luxo A Obra
ele escolhera uma epígrafe de Húmus,
anterior de dez anos (1966/67) mas já fecha o seu livro, com a Tabula Smaragdina, de Hermes Trismegisto,
o Pai fundador da alquimia:
é um aceno discreto que me faz
recordando que também ele estudava
o ouro da alquimia que se gera a si próprio
no interior da terra

Queria ver talvez se eu tinha mesmo chegado
ao fim do seu folheto, que o não era,
era já o poema contínuo de uma vida,
ela sim forrada por dentro a folha de ouro,
o ouro das palavras
“o nervo que entrelaça a carne toda,
de estrela a estrela da obra”.

Despeço-me, aqui mesmo,
como no café Gelo,
sem saber até quando

A mim, também já de saída,
citar ou evocar já não me chega,
aguardarei o sinal que a Mãe
na véspera me tinha dado
mas sem dizer mais nada:
era um sonho, vejo a Mãe,
aguardando de pé, elegante e de negro
enquanto à sua frente, na mesa coberta
por toalha de linho, vários talheres de prata
iam ser arrumados

Vejo-a que espera.
Sei que virá alguém
para arrumar aquele resto de vida:
era afinal o Poeta,
o filho tão aguardado…




in “Literatura e Arte” - Blog de Ivette Centeno
Este poema foi escrito a 25 de Março de 2015: ao Herberto Helder, in memoriam.

HERBERTO HELDER (Funchal, Madeira, Portugal, 23 de Novembro de 1930 – Cascais, 23 de Março de 2015), poeta, escritor.





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