terça-feira, 31 de julho de 2018

RAMIRO CALLE – As preferências do Divino



RAMIRO CALLE
(Madrid, Espanha, 1943)
Escritor

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As preferências do Divino

Um sacerdote passava frente a uma humilde aldeia. Ouviu uns risos alvoraçados e aproximou-se para ver a que se deviam. Havia uma mãe a dar de comer aos seus quatro filhos, mas o que surpreendeu o sacerdote foi ver que também dava de comer a uma imagem da divindade. 

O sacerdote irritou-se e gritou: «Mulher blasfema, como te atreves a brincar com a imagem de Deus?» Pegou na imagem e levou-a. Não podia permitir que fizessem dela um brinquedo. As crianças ficaram muito tristes e a mulher envergonhada. 

O sacerdote colocou a imagem sagrada no templo. Essa noite, em sonhos, Deus apareceu-lhe e disse: «Insensato! Quem te manda meter o nariz onde não és chamado? Não aceitarei nenhum sacrifício nem qualquer oferenda dos sacerdotes, porque onde eu era realmente feliz era naquela casa, com aqueles meninos. Portanto, assim que acordares amanhã, leva-me a eles. O templo é escuro e triste.»


A solenidade é o símbolo dos medíocres. O sábio tem um grande sentido de humor e o seu coração transborda de ternura e seu entendimento, de compreensão. Uma religião que fecha as portas à alegria e que não celebra a vida perdeu o seu sentido original de aliviar o sofrimento e pôr a uso os meios para que as criaturas sejam mais felizes. Não se chega ao Absoluto com oferendas vazias e rituais empedernidos, mas sim pela vontade de contribuir para o bem-estar e a alegria dos outros.



in "Os Melhores Contos Espirituais do Oriente"




segunda-feira, 30 de julho de 2018

ARMINDO RODRIGUES - Elegia por antecipação à minha morte tranquila



ARMINDO RODRIGUES
(Lisboa, Portugal, 1904 – Lisboa, 1993)
Poeta, tradutor

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Estreou-se nas letras com o volume Voz Arremessada ao Caminho, 1943.
Ligado ao movimento neo-realista, manteve-se fiel ao lirismo português. A partir de 1970 corrigiu e depurou os poemas publicados, trabalho que deu por concluído em 1986, ficando a sua obra poética a constar de 59 títulos.  
Participou activamente nas campanhas oposicionistas de 1945, 1949 e 1958.    

in”Livro dos Portugueses”

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Elegia por antecipação à minha morte tranquila

Vem, morte, quando vieres.
Onde as leis são vis, ou tontas,
não és tu que me amedrontas.
Troquei por penas prazeres.
Troquei por confiança afrontas.
Tenho sempre as contas prontas.
Vem, morte, quando quiseres.





domingo, 29 de julho de 2018

BÉLA BARTOK - Compositor



BÉLA BARTOK
(Hungria, 1881 – EUA, 1945)
Compositor, pianista

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Nascido numa família de tradição musical, recebeu os primeiros ensinamentos da sua mãe. Em 1892 realizou o seu primeiro concerto e em 1899 ingressou na Academia de Música de Budapeste. Enquanto estudava destacou-se no piano, e em 1902 ganhou o Prémio Franz Liszt.

O conhecimento da música popular húngara, romena e eslovaca representou uma importante mudança na sua produção.

Durante a Primeira Guerra Mundial compôs o Quarteto de cordas nº2, op.17 (1915-1917) e as canções eslovacas para coro. 

Conseguiu o primeiro reconhecimento da sua obra com o ballet O príncipe de pau e a pantomina O mandarim maravilhoso.

Depois da aliança da Hungria com a Alemanha nacional-socialista, em1939, Bartok, oposto ao nazismo, exilou-se nos Estados Unidos, onde trabalhou nas Universidades de Columbia e Harvard, à frente da organização e na catalogação dos arquivos de música popular. Ali compôs as suas últimas obras.




in “Auditorium” (excertos)




sábado, 28 de julho de 2018

SAGRADA FAMÍLIA – Barcelona - Espanha




SAGRADA FAMÍLIA

A grandiosa escala e as imagens fantásticas da Igreja Expiatória da Sagrada Família, em Barcelona, Espanha, são a visão do arquitecto António Gaudí, que dirigiu o projecto desde 1884 até à sua morte em 1926. O estilo arquitectural único de Gaudi foi alimentado por uma profunda convicção religiosa.

A Sagrada Família celebra os mistérios da fé católica. A fluída manipulação da pedra e da massa de cimento é conseguida com uma complexa geometria de estruturas abobadadas rodeadas pelas torres de campanário das fachadas principais, que se tornam cada vez mais fantásticas, elevando-se para as polícromas superfícies de cerâmica dos pináculos em pompom representando os Apóstolos. 

Embora só parcialmente terminado, o edifício rivaliza em ambição e proporções com as catedrais da Europa medieval. À continuação da obra durante períodos de mudança política e social simboliza a vitalidade da cultura catalã.




in “Arquitectura” – Neil Stevenson   



sexta-feira, 27 de julho de 2018

FERNANDO LOPES-GRAÇA - Acordai



FERNANDO LOPES-GRAÇA
(Tomar, Portugal, 1906 – Parede, 1994)
Compositor e musicólogo

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Grande compositor, pianista, pedagogo, crítico e ensaísta, deixou uma obra musical extensíssima a par de uma importante obra literária que nos dá testemunho da sua grande formação humanista e da sua intensa actividade cultural e política. 

Por motivos políticos foi impedido de leccionar em instituições públicas e mais tarde no ensino privado e não pôde, também, usufruir de uma bolsa que ganhou para estudar no estrangeiro.

Após a sua prisão por motivos políticos em Caxias (1936), Fernando Lopes-Graça foi viver para Paris entre 1937-1939, a expensas suas, onde estudou composição com Charles Koechlin e musicologia na Sorbonne com Paul-Marie Masson. Aí escreveu as primeiras harmonizações de canções populares portuguesas e compôs La fièvre du temps por encomenda da "Maison de La Culture".

Em 1942 fundou a Sociedade de Concertos “Sonata”, que dirigiu até 1961, dedicada à divulgação da música contemporânea e que se tornou numa referência da vanguarda intelectual.

A sua intensa produção artística manteve-se entre 1927 e 1992, tendo produzido 260 títulos e havendo no seu catálogo 694 peças, entre obras válidas, versões, revisões, esboços e transcrições.


in “Museu da Música Portuguesa” (excertos)

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Acordai

Acordai
acordai
homens que dormis
a embalar a dor
dos silêncios vis
vinde no clamor
das almas viris
arrancar a flor
que dorme na raiz

Acordai
acordai
raios e tufões
que dormis no ar
e nas multidões
vinde incendiar
de astros e canções
as pedras do mar
o mundo e os corações

Acordai
acendei
de almas e de sóis
este mar sem cais
nem luz de faróis
e acordai depois
das lutas finais
os nossos heróis
que dormem nos covais
Acordai!


Música: Fernando Lopes Graça
Letra: José Gomes Ferreira




quinta-feira, 26 de julho de 2018

FERREIRA GULLAR – O Anjo



FERREIRA GULLAR
(São Luís, Brasil, 1930 – Rio de Janeiro, 2016)
Escritor, poeta, crítico de arte, biógrafo, tradutor

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É considerado um dos maiores poetas brasileiros. Sua obra é marcada por diferentes fases de pesquisa estética, desde o experimentalismo e o lirismo até a poesia de cordel e a dicção coloquial. 

No livro A Luta Corporal, de 1954, por exemplo, encontram-se composições intimistas de forte musicalidade, na série Sete Poemas Portugueses, e ainda poemas em prosa, como a Carta ao Inventor da Roda, peças concisas e substantivas que se aproximam de João Cabral de Melo Neto (1920-1999), como Galo Galo, e ainda textos experimentais que antecipam a poesia concreta, pela espacialização das linhas na página, fragmentação da palavra e criação de neologismos.
Um bom exemplo da arquitectura poética desse livro é o poema:
             
            O Anjo:

"O anjo, contido
em pedra
e silêncio,
me esperava.
Olho-o, identifico-o
tal se em profundo sigilo
de mim o procurasse desde o início.
Me ilumino! todo
o existido
fora apenas a preparação
deste encontro.
O anjo é grave
agora.
Começo a esperar a morte".



in “Enciclopédia Itaú Cultural”




quarta-feira, 25 de julho de 2018

ALEXANDRE O'NEILL - Os Convencidos da Vida


                              ALEXANDRE O'NEILL
(Lisboa, Portugal, 1924 - 1986)
Poeta

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OS CONVENCIDOS DA VIDA

Todos os dias os encontro. Evito-os. Às vezes sou obrigado a escutá-los, a dialogar com eles. Já não me confrangem. Contam-me vitórias. Querem vencer, querem, convencidos, convencer. Vençam lá, à vontade. Sobretudo, vençam sem me chatear.
 
Mas também os aturo por escrito. No livro, no jornal. Romancistas, poetas, ensaístas, críticos (de cinema, meu Deus, de cinema!). Será que voltaram os polígrafos? Voltaram, pois, e em força.
 
Convencidos da vida há-os, afinal, por toda a parte, em todos (e por todos) os meios. Eles estão convictos da sua excelência, da excelência das suas obras e manobras (as obras justificam as manobras), de que podem ser, se ainda não são, os melhores, os mais em vista.
 
Praticam, uns com os outros, nada de genuinamente indecente: apenas um espelhismo lisonjeador. Além de espectadores, o convencido precisa de irmãos-em-convencimento. Isolado, através de quem poderia continuar a convencer-se, a propagar-se?
 
(...) No corre-que-corre, o convencido da vida não é um vaidoso à toa. Ele é o vaidoso que quer extrair da sua vaidade, que nunca é gratuita, todo o rendimento possível. Nos negócios, na política, no jornalismo, nas letras, nas artes. É tão capaz de aceitar uma condecoração como de rejeitá-la. Depende do que, na circunstância, ele julgar que lhe será mais útil.
 
Para quem o sabe observar, para quem tem a pachorra de lhe seguir a trajectória, o convencido da vida farta-se de cometer «gaffes». Não importa: o caminho é em frente e para cima. A pior das «gaffes», além daquelas, apenas formais, que decorrem da sua ignorância de certos sinais ou etiquetas de casta, de classe, e que o inculcam como um arrivista, um «parvenu», a pior das «gaffes» é o convencido da vida julgar-se mais hábil manobrador do que qualquer outro.
 
Daí que não seja tão raro como isso ver um convencido da vida fazer plof e descer, liquidado, para as profundas. Se tiver raça, pôr-se-á, imediatamente, a «refaire surface». Cá chegado, ei-lo a retomar, metamorfoseado ou não, o seu propósito de se convencer da vida - da sua, claro - para de novo ser, com toda a plenitude, o convencido da vida que, afinal... sempre foi.


in "Uma Coisa em Forma de Assim"




terça-feira, 24 de julho de 2018

CARTA DE NAPOLEÃO BONAPARTE A JOSEFINA BONAPARTE



Carta de Napoleão Bonaparte a Josefina Bonaparte


Verona, 13 de Novembro de 1796

Não te amo, nem um pouco; ao contrário, detesto-te. És uma tola, marota, desastrada Cinderela. Nunca me escreves (*); não amas ao teu marido; sabes quanto prazer tuas cartas me proporcionam, e nem por isso te dás ao trabalho de rabiscar-me, casualmente, algumas linhas.

Que fazes o dia todo, Madame? Que negócio tens assim tão importante que não te deixa tempo para escrever ao teu devotado amante? Que afeição sufoca e põe de lado o amor, o terno e constante amor que lhe prometeste? De que espécie pode ser esse ente maravilhoso, esse novo amante que te absorve todos os momentos, que te tiraniza os dias e te impede de dar qualquer atenção ao teu esposo? Josefina, cuidado! Alguma bela noite, as portas se escancarão e aí surgirei.

Em verdade, meu amor, estou inquieto por não receber notícias tuas; escreve-me com urgência quatro páginas repletas de coisas agradáveis, que me encham o coração de sentimentos aprazíveis.
Espero poder em breve esmagar-te em meus braços e cobrir-te com um milhão de beijos candentes com os do Sol do equador.

Bonaparte

*** 

(*) A fim de não distrair Napoleão dos seus deveres, o Directório francês proibira Josefina de escrever-lhe. Napoleão comandava, por essa época, o exército da Itália, empenhado em libertar o país do domínio austríaco.



in ”Grandes Cartas da História” – José Paulo Paes.


segunda-feira, 23 de julho de 2018

ART BUCHWALD – Veneza à Hemingway



ART BUCHWALD
(EUA, 1925 – 2007)
Escritor, cronista, humorista
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A sua coluna no “The Washington Post” foi publicada em mais de 550 jornais. Escreveu 30 livros. Too Soon to Say Goodbye (2006), foi a sua última obra.
Em 1986 foi eleito para a "American Academy and Institute of Arts and Letters".

***
                        
Veneza à Hemingway    

Todo aquele que vem a Veneza é influenciado, de algum modo, por um dos grandes escritores que escreveram acerca da cidade. Hemingway influenciou-se talvez mais que qualquer outro e se não fora Na outra margem entre as árvores, duvido que alguma vez gozasse o prazer de lá ir.
Vejamos, por exemplo, a noite em que com minha mulher fui jantar ao Gritti Palace Hotel. Foi um esplêndido jantar, um imponente jantar, um jantar de lagosta, e a lagosta era boa. Quando chegou vinha escura, verde, selvagem e custou uns dias de salário, mas depois de cozinhada ficou vermelha e não a trocaria por cinco fatos.
Olhei para a minha mulher, do outro lado da mesa. Estava encantadora. Quase tão encantadora como a lagosta. Apertei-lhe a mão com firmeza.
- Amo-te e gosto que sejas como és – disse-lhe. Filha, depois de jantar vamos dar um passeio de gôndola.
- Que negócio é esse de me chamares filha? – disse minha mulher. – E deixa de me apertar a mão com tanta força. Assim não posso comer a lagosta.

- Minha querida filha, minha pequena filha, minha única filha – disse eu. – Quem é o teu amor?
- Se me chamas filha mais alguma vez, atiro-te com a garrafa de vinho – disse ela. – E já que estás de maré, quererás dizer-me o que estiveste a fazer toda a tarde na praia com Gina Lollobrigida?
- Vamos, vamos, filha, não pensemos na Lollobrigida. Encontraremos uma gôndola, tu serás tu, eu serei eu e o gondoleiro será ele.
- Já te avisei acerca desse negócio da filha.

Saímos. Agora ela parecia-se mais com Mickey Mantle ou Bobby Feller.
Encontrámos uma gôndola comprida, boa, brava, verdadeira.
- Porque não alugamos antes um gasolina? – perguntou minha mulher. – Uma gôndola é terrivelmente lenta.
- Porque és minha mulher e estamos sós em Veneza, porque quero apertar-te nos meus braços e quero que tu também me apertes e porque, sempre fica mais barato que alugar um gasolina.
- O canal cheira mal – disse ela. Vamos voltar para o Lido e ver um filme. Vieste cá por causa do festival de cinema.
- Os filmes cheiram quase tão mal como o canal. Excepto aqueles em que intervêm Marlon Brando, Gary Grant e Frank Sinatra ou os que tratam dum número restrito de assuntos. Vamos ao Harry´s tomar uma última bebida antes de te beijar para todo o sempre e durante um dia inteiro.
- Quero voltar para o Hotel – disse a minha mulher. – A gôndola ou a lagosta fizeram-me mal.
- Qual delas, filha?
- Como diabo posso saber?
- Está bem, levo-te a casa e depois leio-te Dante. E agora, antes que fiques mesmo doente, filha, beija-me e aperta-me com força e sinceridade.
Deve ter sido o último filha, porque mal dei por mim estava dentro do canal com roupas e tudo. Mas era bom estar vivo, molhado e apaixonado em Veneza. Hemingway não deve ter passado dias melhores.



in “Mais Caviar”



domingo, 22 de julho de 2018

TOMÁS MEDEIROS - Meu Canto Europa



TOMÁS MEDEIROS
(Cidade de S. Tomé, 1931)
Escritor, poeta, médico

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Foi médico, activista e dirigente político e militar. Concluiu formação em Medicina e estudos em Medicina Militar. Participou activamente em organizações políticas de libertação de países africanos. Tem poesia, prosa e ensaios publicados em Portugal e no estrangeiro e figura em várias antologias temáticas.

***
Meu Canto Europa

Agora,
agora que todos os contactos estão feitos,
as linhas dos telefones sintonizadas,
as linhas dos morses ensurdecidas,
os mares dos barcos violados,
os lábios dos risos esfrangalhados,
os filhos incógnitos germinados,
os frutos do solo encarcerados,
os músculos definhados
e o símbolo da escravidão determinado.

Agora,
agora que todos os contactos estão feitos,
com a coreografia do meu sangue coagulada,
o ritmo do meu tambor silenciado,
os fios do meu cabelo embranquecidos,
meu coito denunciado e o esperma esterilizado,
meus filhos de fome engravidados,
minha ânsia e meu querer amordaçados,
minhas estátuas de heróis dinamitadas,
meu grito de paz com os chicotes abafado,
meus passos guiados como passos de besta,
e o raciocínio embotado e manietados,

Agora,
agora que me estampaste no rosto
os primores da tua civilização,
eu te pergunto, Europa,
eu te pergunto: AGORA?



sábado, 21 de julho de 2018

JÚLIO POMAR – Picasso - «Guernica»



JÚLIO POMAR
 (Lisboa, Portugal, 1926 - 2018)
Pintor

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Picasso - «Guernica»

A posição de «Guernica» na obra de Picasso é a sua primeira olhadela deitada ao mundo em que os homens vivem, amam, sofrem, morrem ou são mortos. Em Picasso, um novo caminho se abria: o caminho da tragédia actual. Os fragmentos avulsos de que se servia tinham encontrado tempo e lugar.

E agora, não era só a Espanha que sofria, era a Europa inteira a experimentar o tacão nazi. Toda a Europa se tornava vítima da suprema tourada, colhida a levada ao desespero. Goelas abertas, punhos cerrados, dentes enormes, afiados como quando saíram do caos, olhos sem órbitas faziam os últimos apelos, exalavam ódio em toda a linha, - em toda a Europa. Pavor, devastação e morte, em toda a Europa. «Guernica» em mil e uma cidades e aldeias da Europa.

A tragédia espanhola dera sentido à obra de Picasso. A tragédia mundial iria permitir que Picasso orientasse ainda mais a sua actividade, no sentido de uma cada vez mais franca comunhão com os sofrimentos de todos os homens? Aos factos brutais que arrancaram Picasso à sua solidão e originaram «Guernica», vinham sobrepor-se outros, não menos brutais. A realidade ganhava formas insofismáveis. O significado histórico de «Guernica», de todas as Guernicas, tornava-se dia a dia mais cru. Os homens já não tinham lugar para dúvidas.

O solitário Picasso iria, como «Guernica» indicava, trocar a sua solidão pelo convívio com as dores comuns? O tempo presente manteria, nas suas telas, a posição conquistada por «Guernica»? Qual poderia ser a índole dessas novas obras, geradas em meio desta nova grande guerra, destruidora dos mitos e das condescendências? Qual a reacção dos brônquios de Picasso a este ar tão diferente do da sua solidão?



in “Mundo Literário” – 1946 (excerto)
Imagem: pintura de Carlos Botelho



sexta-feira, 20 de julho de 2018

CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE – A Falsa Eternidade



CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE
(Itabira, Brasil, 1902 - Rio de Janeiro, 1987)
Poeta, contista

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A FALSA ETERNIDADE

O verbo prorrogar entrou em pleno vigor, e não só se prorrogaram os mandatos como o vencimento das dívidas e dos compromissos de toda sorte. Tudo passou a existir além do tempo estabelecido. Em consequência  não havia mais tempo.

Então suprimiram-se os relógios, as agendas e os calendários. Foi eliminado o ensino de História. Para que História? Se tudo era a mesma coisa, sem perspectiva de mudança.

A duração normal da vida também foi prorrogada e, porque a morte deixasse de existir, proclamou-se que tudo entrava no regime da eternidade. Aí começou a chover, e a eternidade se mostrou encharcada e lúgubre. E o seria para sempre, mas não foi. Um mecânico que se entediava em demasia com a eternidade aquática inventou um dispositivo para não se molhar. Causou a maior admiração e começou a recolher inúmeras encomendas. A chuva foi neutralizada e, por falta de objectivo, cessou. Todas as outras formas de duração infinita foram cessando igualmente.

Certa manhã, tornou-se irrefutável que a vida voltara ao signo do provisório e do contingente. Eram observados outra vez prazos, limites. Tudo refloresceu. O filósofo concluiu que não se deve plagiar a eternidade.



in “Contos Plausíveis” 
Imagem: Carlos Drummond de Andrade - pintura de Cândido Portinari.







quinta-feira, 19 de julho de 2018

FERNANDA DE CASTRO – Ao Fim da Memória



FERNANDA DE CASTRO
(Lisboa, Portugal, 1900 – 1994)
Escritora

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É difícil realizar um poema, tecnicamente perfeito, sem que a técnica deturpe, diminua ou empobreça a Ideia. É difícil construir uma obra musical sem que a carpintaria invisível perturbe a pureza ideal dos sons; mais difícil, porém, é que dois seres humanos se aproximem, na ânsia de se encontrarem, sem que fique reduzida a estilhaços o puro cristal das suas almas!

Acordei esta manhã com dores de cabeça e logo pensei que fosse um princípio de gripe. Mas não, eram os sonhos, os sonhos desta noite, que não cabiam nem cabem nas quatro paredes da minha cabeça. Desta vez não havia nestes sonhos nem monstros apocalípticos, nem florestas eriçadas de setas ou de lanças, havia estrelas, havia música, havia perfumes. Onde estaria? No Céu? Não, porque cheirava a mimosa, porque havia o marulhar, quase o ciciar das ondas contra os rochedos. Na terra? Também não, porque não sentia o chão debaixo dos pés, porque flutuava sem peso numa atmosfera mais ténue, mais fluída. Onde, então? A meio caminho entre a Terra e o Céu, onde os pesadelos se transformam em sonhos e os braços em asas?



in “Ao Fim da Memória”






quarta-feira, 18 de julho de 2018

PEDRO DA SILVEIRA – Em Macau à procura de Camilo Pessanha



PEDRO DA SILVEIRA
(Fajã Grande, Açores, Portugal, 1922 — Lisboa, 2003)
Poeta, tradutor, investigador

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Publicou artigos de crítica literária e vários trabalhos de investigação, sobretudo recolhas do folclore açoriano.

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Em Macau à procura de Camilo Pessanha

Onde foi a casa do poeta
agora é um pátio de escola em que brincam crianças
e tem à frente um baloiço
e lá atrás duas árvores.

Na esquina da rua com o seu nome
um mendigo serrazina a sua viola
e o som alonga-se chorado,
chora e perde-se devagar
nas outras ruas que levam
à travessa do Pagode,
à porta da loja onde ainda o espera
o amigo antiquário Ah-Men.

Já ninguém sabe o destino
do cachimbo com que inventava
paraísos e princesas
ou sereias, com seus cantos,
músicas e campos de liliáceas,
cores de mil maravilhas
ao mundo que bem sabia
que era mais o daquele mendigo
aquela esquina para a Sam Má-lô
e a sua viola chorando
pela moeda de meia pataca
que eu também me esqueci de deitar
na tigela que tinha ao lado.