domingo, 30 de setembro de 2018

NO DIA EM QUE O SOL, A LUA E O VENTO SAÍRAM PARA JANTAR



NO DIA EM QUE O SOL, A LUA E O VENTO SAÍRAM PARA JANTAR


Certo dia, o Sol, a Lua e o Vento saíram para jantar com seus tios, o Trovão e o Relâmpago. Sua mãe Estrela, uma das mais longínquas que se vê no céu, ficou esperando sozinha pelo retorno de suas crianças.

O Sol e o Vento eram gananciosos e egoístas. Eles desfrutavam da grande festa preparada para eles, sem pensar em levar um pouco das finas iguarias para sua mãe. Mas a delicada Lua não a esqueceu. De cada prato servido no banquete, ela guardava uma pequena porção sob suas longas e lindas unhas para que a Estrela pudesse também partilhar da festa.

Quando retornaram, a mãe, que tinha ficado toda a noite em vigília pelos filhos, com seu pequeno e brilhante olho atento, perguntou: “Bem, meus filhos, o que trouxeram para mim?”. Sol, o primogénito, respondeu: “Não trouxe nada. Saí para me divertir com meus amigos, e não para buscar um jantar para minha mãe!”. E o Vento disse: “Tampouco eu trouxe qualquer coisa, mãe. Não podia esperar que te trouxesse uma porção de coisas boas, quando apenas saí para meu próprio prazer”. Mas a Lua disse: “Mãe, busca um prato, veja o que te trouxe”. E, sacudindo as mãos, despejou um selecto jantar como nunca tinha sido visto.

A Estrela virou-se para o Sol, e disse: “Você, que saiu para divertir-se com teus amigos, regalar-se e deleitar-se sem um único pensamento para tua mãe, será amaldiçoado. A partir de agora, teus raios serão sempre quentes e ardentes, e queimarão tudo o que tocarem. Os homens te detestarão, e cobrirão suas cabeças quando você aparecer”.

Eis a razão por que o Sol é tão quente.

Tendo falado ao Sol, voltou-se para o Vento, e disse: “Você, que igualmente esqueceu de tua mãe em meio a teus deleites pessoais, oiça tua sentença: Você soprará sempre nas estações quentes e secas, crestará e fará secar todas as coisas vivas. Os homens te detestarão e te evitarão por todo o tempo”.

Eis a razão porque o Vento é desagradável mesmo no calor”.

Mas para a Lua ela disse: “Filha, porque você lembrou de tua mãe e guardou para ela uma parte de teu próprio prazer, de hoje em diante terá para sempre uma suave temperatura, será calma e brilhante. Nenhuma nocividade acompanhará o resplendor de teus raios puros, e os homens sempre te chamarão a abençoada”.

Eis a razão porque a luz da Lua é tão suave, amena e bela.




in” Contos de fadas indianos” – selecção de Joseph Yacobs
Imagem: pintura de Caspar David Friedrich



sábado, 29 de setembro de 2018

MARGUERITE DURAS - Ontem à Noite



MARGUERITE DURAS
(Vietname, Ásia, 1914 - Paris, França, 1996)
Romancista, poetisa, dramaturga

***
Com perfil literário duro e denso, Duras ficou imortalizada pela sua maneira de abordar a condição humana, tendo escrito sobre vida e morte, sobre relações sexuais e outros tabus para sua época, sempre com um estilo de angústia e desespero que marcou sua literatura. Foi uma das escritoras francesas de maior impacto na literatura contemporânea.

Escreveu o roteiro do clássico Hiroshima Meu Amor (1959), do premiado cineasta francês Alain Resnais, um dos destaques do movimento nouvelle vague.
Em 1984 publicou O Amante, considerada a obra mais importante da autora.

in ”Panorama Cultural” (excertos)

***

Ontem à Noite

Ontem à noite, depois da sua partida definitiva, fui para
aquela sala do rés-do-chão que dá para o parque, fui para
ali onde fico sempre no mês de Junho, esse mês que inaugura o Inverno.
Tinha varrido a casa, tinha limpo tudo como se fosse antes do meu funeral.
Estava tudo depurado de vida, isento, vazio de sinais, e depois disse para comigo:
vou começar a escrever para me curar da mentira de um amor que acaba.
Tinha lavado as minhas coisas, quatro coisas, estava tudo limpo, o meu corpo,
o meu cabelo, a minha roupa, e também aquilo que encerrava o todo, o corpo e a roupa, estes quartos, esta casa, este parque.
E depois comecei a escrever...


Imagem: Cironneau / AP Images

sexta-feira, 28 de setembro de 2018

WALT WHITMAN - Escuto a América a cantar


WALT WHITMAN
(EUA, 1819 – 1892)
Poeta, ensaísta

***

Na obra Leaves of Grass, Whitman exprime em poemas visionários um certo panteísmo e um ideal de unidade cósmica que o Eu representa. Profundamente identificado com os ideais democráticos da nação americana, Whitman não deixou de celebrar o futuro da América. 

Introduziu uma nova subjectividade na concepção poética e fez da sua poesia um hino à vida. A técnica inovadora dos seus poemas, nos quais a ideia de totalidade se traduziu no verso livre, influenciou não apenas a literatura americana posterior, mas todo o lirismo moderno, incluindo o poeta e ensaísta português Fernando Pessoa.


in “Infopédia” (excertos)

***

Escuto a América a cantar

Escuto a América a cantar, as várias canções que escuto;
O cantar dos mecânicos – cada um com sua canção, como deve ser, forte e contente;
O carpinteiro cantando a sua, enquanto mede a tábua ou viga,
O pedreiro cantando a sua, enquanto se prepara para o trabalho ou termina o trabalho;
O barqueiro cantando o que pertence a ele em seu barco – o assistente cantando no deque do navio a vapor;
O sapateiro cantando sentado em seu banco – o chapeleiro cantando de pé;
O cantar do lenhador – o jovem lavrador, em seu rumo pela manhã, ou no intervalo do almoço, ou ao por-do-sol;
O delicioso cantar da mãe – ou da jovem esposa ao trabalho – ou da menina costurando ou lavando – cada uma cantando o que lhe pertence, e a ninguém mais;
O dia, ao que pertence ao dia – De noite, o grupo de jovens, robustos, amigáveis,
Cantando, de bocas abertas, suas fortes melodiosas canções.





quinta-feira, 27 de setembro de 2018

ANNA ENQUIST - Cena Campestre



ANNA ENQUIST
(Amesterdão, Países Baixos, 1945)
Poetisa, romancista, psicanalista

***
Publicou, em 1991, a colectânea poética Cantos de Soldados.

***
Cena Campestre

A casa esperou por nós,
pensamos. O duplo renque de árvores
acena-nos que nos cheguemos. Num sussurro,
o rio vai escorregando cheio
entre as margens.

À hora exacta, o sol vai esconder-se
por trás dos campos. A escuridão
envolve a casa que nos protege.
Acendemos o fogo, bebemos
entre as paredes.

Vendi-me inteira à
segurança e debruço-me da janela.
Dormem cavalos e galos, a água
pisca o olho à lua, e eu a pagar,
sempre a pagar.



Tradução: Catherine  Barel





quarta-feira, 26 de setembro de 2018

VICENTE ALEIXANDRE - Chove



VICENTE ALEIXANDRE
(Sevilha, Espanha, 1898 - Madrid, 1984)
Poeta

***

Em 1949 é nomeado “Académico da Língua” e desde daí converteu-se em professor e protector dos jovens poetas espanhóis, que o visitam com frequência na sua casa de Madrid, onde organiza tertúlias literárias.

A sua obra caracteriza-se pelo uso de metáforas e é reconhecido como o principal poeta surrealista espanhol.

Em 1977 recebe o “Prémio Nobel de Literatura”. Este prémio reconhece universalmente a sua obra e, de certo modo, toda a Geração de 27.


in “Instituto Cervantes” (excerto/adaptação)


***
 Chove

Nesta tarde chove, e chove pura
a tua imagem. E o dia abre-se na minha memória.
Entraste.
Não oiço. A memória dá-me apenas a tua imagem.
Só o teu beijo ou chuva cai na memória.
A tua voz chove, e chove o beijo triste,
o beijo fundo,
beijo molhado em chuva. O lábio é húmido.
Húmido de memória o beijo chora
de uns céus cinzentos
delicados.
Chove o teu amor molhando a minha memória
e cai e cai. O beijo
ao fundo cai. E cinzenta também
vai caindo a chuva.


Tradução: Armando Silva Carvalho





terça-feira, 25 de setembro de 2018

CAN YÜCEL – Poema Chinês (século VII)



CAN YÜCEL
 (İstambul, Turquia, 1926 –Datça, 1999)
Poeta, tradutor

***

A poesia de Can Yücel é conhecida pela sua escrita aberta e honesta, que versa sobre temas variados, da natureza às pessoas, dos eventos quotidianos às ideias, através de termos e palavras próprios de uma língua simples e popular. Na sua obra, destacam-se o sentimentalismo cancioneiro e a obsessão com o verde da natureza.


in “Revista Literária" (excertos)

***

POEMA CHINÊS (SÉCULO VII)

Rico contra pobre se puser acção
A lei vai p´ra o rico e lhe dá razão

Pobre contra rico se acção puser
O prédio em causa do rico vai ser

Rico contra rico se acção intentar
O juiz com desculpa se vai retirar

Pobre contra pobre se for, desse jeito
É que enfim encontra lugar o direito



Tradução: Doina Zugravescu






segunda-feira, 24 de setembro de 2018

MIKHAIL LÉRMONTOV - Nuvens



MIKHAIL LÉRMONTOV
(Rússia, 1814 - 1841)
Poeta, escritor, dramaturgo, pintor

***

Durante os seus 13 anos de actividade criativa, dos 26 que viveu, Lérmontov fez uma contribuição inestimável para a literatura russa, como autor de uma lírica excepcional em múltiplos temas. O seu trabalho criativo concluiu o desenvolvimento do poema romântico nacional e criou os alicerces para o romance realista do século XIX.

Escreveu mais de 400 versos, três dezenas de poemas, dois romances e sete dramas, enquanto activamente se ocupava de pintura e compunha música para os seus próprios poemas. Na história da literatura russa, Lérmontov ocupa o lugar de "génio místico" e "profeta".


in “Universidade de Coimbra” (excertos)

***
Nuvens
Ó nuvens pelos céus que eternamente andais!
Longo colar de pérolas na estepe azul,
exiladas como eu, correndo rumo ao sul,
longe do caro norte que, como eu, deixais!
Que vos impele assim? Uma ordem de Destino?
Oculto mal secreto? Ou mal que se conhece?
Acaso carregais o crime que envilece?
Ou só de amigos vis o torpe desatino?
Ali não: fugis cansadas da maninha terra,
e estranhas a paixões e o sofrimento estranhas
eternas pervagais as frígidas entranhas.
E não sabeis, sem pátria, a dor que o exílio encerra.


Tradução: Jorge de Sena
Imagem: retrato de Mikhail Lermontov : Philipp Osipovich Budkin.

domingo, 23 de setembro de 2018

KENT NERBURN - Sabedoria Indígena - O Silêncio



KENT NERBURN
(Minnesota, EUA, 1946) 
Escritor

***
Sabedoria indígena
                              O Silêncio

Nós os índios, conhecemos o silêncio.  Não temos medo dele.
Na verdade, para nós ele é mais poderoso do que as palavras.
Nossos ancestrais foram educados nas maneiras do silêncio e eles
nos transmitiram esse conhecimento.
"Observa, escuta, e logo actua", nos diziam.
Esta é a maneira correcta de viver.
Observa os animais para ver como cuidam se seus filhotes.
Observa os anciões para ver como se comportam.
Observa o homem branco para ver o que querem.
Sempre observa primeiro, com o coração e a mente quietos,
e então aprenderás.
Quanto tiveres observado o suficiente, então poderás actuar.
Com vocês, brancos, é o contrário. Vocês aprendem falando.
Dão prémios às crianças que falam mais na escola.
Em suas festas, todos tratam de falar.
No trabalho estão sempre tendo reuniões
nas quais todos interrompem a todos,
e todos falam cinco, dez, cem vezes.
E chamam isso de "resolver um problema".
Quando estão numa habitação e há silêncio, ficam nervosos.
Precisam  preencher o espaço com sons.
Então, falam compulsivamente, mesmo antes de saber o que vão dizer.
Vocês gostam de discutir.  
Nem sequer permitem que o outro termine uma frase.
Sempre interrompem.
Para nós isso é muito desrespeitoso e muito estúpido, inclusive.
Se começas a falar, eu não vou te interromper.
Te escutarei.
Talvez deixe de escutá-lo se não gostar do que estás dizendo.
Mas não vou interromper-te.
Quando terminares, tomarei minha decisão sobre o que disseste,
mas não te direi se não estou de acordo, a menos que seja importante.
Do contrário, simplesmente ficarei calado e me afastarei.
Terás dito o que preciso saber.
Não há mais nada a dizer.
Mas isso não é suficiente para a maioria de vocês.
Deveríamos pensar nas suas palavras como se fossem sementes.
Deveriam plantá-las, e permiti-las crescer em silêncio.
Nossos ancestrais nos ensinaram que a terra está sempre nos falando,
e que devemos ficar em silêncio para escutá-la.
Existem muitas vozes além das nossas.
Muitas vozes.
Só vamos escutá-las em silêncio.



in "Neither Wolf nor Dog. On Forgotten Roads with an Indian Elder" 




sábado, 22 de setembro de 2018

ANTÓNIO OSÓRIO - Maternidade



ANTÓNIO OSÓRIO
(Setúbal, Portugal, 1933)
Poeta

***
A sua actividade literária inicia-se em 1954, como colaborador da revista Anteu, mas é apenas na década de 70 que publica o seu primeiro livro de poesia, A Raiz Afectuosa, que “determina em boa parte a tonalidade de uma voz que se assume como vocação primordial, íntima e natural para uma espécie de canto da criação e do mistério da vida e da morte, do animal e do humano”, inflectindo o percurso do que na época se tinha como modernidade. 

Com mais de vinte títulos publicados, muitos dos quais também traduzidos, revelou a cumplicidade da arte poética com a linguagem da pintura na colaboração com nomes maiores desta área, como Manuel Cargaleiro ou Júlio Pomar, que ilustram obras de sua autoria.


in “Dicionário de Autores”

***
MATERNIDADE

Dores como navio singrando
e ei-lo que chega,
suspenso na corrente do tempo.

Desfeita a ponte, náufrago rubro,
abrem-se primeiras folhas, os olhos
e surge o clamor do seu grito.







sexta-feira, 21 de setembro de 2018

NICOLAU MAQUIAVEL - Imitar o Melhor Exemplo



NICOLAU MAQUIAVEL
(Florença, Itália, 1469 - 1527)
Filósofo, historiador, diplomata

***

Imitar o Melhor Exemplo

Caminhando os homens quase sempre pelos caminhos já por outros percorridos, e tendendo, nas suas acções, a proceder por imitação, não podem, contudo, seguir inteiramente a mesma via nem alcançar a virtude daqueles que pretendem imitar. 

Por tal motivo, um homem avisado deve procurar seguir as vias percorridas por grandes homens e imitar aqueles que atingiram o mais elevado patamar de excelência, de modo que, se não pudermos igualar a sua virtude, deles vos fique, ao menos, o perfume do seu valor. 

É o que fazem os archeiros habilidosos, os quais, parecendo-lhes muito distante o alvo que desejam atingir, e, conhecendo bem as limitações de alcance do seu arco, fazem pontaria para um ponto muito mais alto do que o alvo, não para aí acertar com as suas flechas, mas, sim, para, com a ajuda de tão elevada mira, poderem bater o alvo pretendido.




in “O Príncipe”




quinta-feira, 20 de setembro de 2018

SEBASTIÃO ALBA – Ninguém meu amor



SEBASTIÃO ALBA
(Braga, Portugal, 1940 – 2000)
Poeta

***
Com apenas oito anos parte para Moçambique, onde vive durante os próximos 35 anos. É aí que publica os seus primeiros poemas e livros. Em 1983 desiludido com a situação política de Moçambique, regressa com a sua mulher e as duas filhas, a Portugal, Braga, sua terra natal.

Em 1988, depois de uma breve estadia em Lisboa, volta a Braga. Separa-se da sua mulher. Fuma muito e bebe cada vez mais. Depois de várias tentativas de desintoxicação, passa a viver à margem: Torna-se num sem abrigo (por opção), deambulando pelas ruas e dormindo por onde calha, num banco de jardim, no alpendre de uma igreja etc. No entanto nunca deixa de escrever e o forte alcoolismo não o impede mesmo de ir preparando e publicando (com a ajuda de amigos) os seus poemas. 

A 15 de Outubro de 2000, de manhã muito cedo, Sebastião Alba é atropelado mortalmente por uma motorizada.


in“Universidade do Minho”

***

NINGUÉM MEU AMOR

Ninguém meu amor
ninguém como nós conhece o sol
Podem utilizá-lo nos espelhos
apagar com ele
os barcos de papel dos nossos lagos
podem obrigá-lo a parar
à entrada das casas mais baixas
podem ainda fazer
com que a noite gravite
hoje do mesmo lado
Mas ninguém meu amor
ninguém como nós conhece o sol
Até que o sol degole
o horizonte em que um a um
nos deitam
vendando-nos os olhos.




quarta-feira, 19 de setembro de 2018

HENRIK NORDBRANDT - Pragmático



HENRIK NORDBRANDT
(Frederiksberg, Dinamarca, 1945)
Poeta, romancista, tradutor

***
É um dos autores mais influentes e considerados do panorama lírico Dinamarquês.


***
Pragmático

As coisas que existiam antes de tu morreres
e as coisas que surgiram depois:

Às primeiras pertencem, antes do mais,
as tuas roupas, as jóias e as fotografias
e o nome da mulher que te deu o nome
e também morreu jovem…
Mas também um par de receitas, o arranjo
de um certo canto na sala,
uma camisa que me passaste a ferro
e que guardo cuidadosamente
debaixo da minha resma de camisas,
Algumas peças de música, e o cão
sarnento que por aí anda
Com um sorriso estúpido, como se ainda aqui estivesses.

Às últimas pertencem a minha caneta,
um perfume conhecido
na pele de uma mulher que mal conheço
e as novas lâmpadas que pus no candeeiro do quarto
que iluminam o que leio acerca de ti
em todos os livros que leio.

As primeiras recordam-me que exististe,
as últimas que já não existes.
Que sejam quase indistinguíveis
é o mais difícil de suportar.

Tradução: José Alberto Oliveira

terça-feira, 18 de setembro de 2018

ROMEU CORREIA - Escritor



ROMEU CORREIA
(Almada, Portugal, 1917 - 1996)
Escritor, dramaturgo

***

Representante típico do neo-realismo teatral, sobretudo na primeira fase da sua obra, passou depois a inspirar-se nas fontes da literatura oral popular. Na sua produção dramática combinam-se elementos do teatro de fantoches e de feira, do circo, do melodrama, do teatro de cordel, dos recursos do teatro de vanguarda.  

Algumas das suas obras: Razão, Sábado sem Sol, Um Passo em Frente, Trapo Azul, Bonecos de Luz, Casaco de Fogo, Grito no Outono.



in “Portugal Século XXI”

Imagem: Mural em azulejo em homenagem ao escritor Romeu Correia, na Rua Leonel Duarte Ferreira, Almada.




segunda-feira, 17 de setembro de 2018

FRIEDRICH NIETZSCHE – Do Espírito de Gravidade


FRIEDRICH NIETZSCHE
(Reino da Prússia, 1844 – Império Alemão, 1900)
Filósofo, filólogo, poeta

***
Do Espírito de Gravidade

«A minha linguagem – é a do povo: linguagem muito forte e muito franca para os delicados. E a minha palavra parece ainda mais insólita aos escritorzecos e aos rabiscadores de todas as qualidades.

«A minha mão – é a mão de um louco. Pobres de todas as mesas, de todas as paredes, de quanto oferece ainda um campo livre para loucos arabescos, para rabiscos de louco!

«O meu pé – é casco de cavalo. Trota e galopa a despeito de todos os obstáculos, para cima e para baixo pelos campos, e as suas correrias rápidas dão-me um prazer diabólico.

«O meu estômago - não será antes um estômago de águia? O que ele prefere é carne de cordeiro. Mas é certamente um estômago de ave.

«Sustentado com uma carne inocente, satisfeito com pouco, sempre pronto para o voo, impaciente por voar, elevar-me, eis como sou. Como não havia de ter alguma coisa de ave?

«E é sobretudo por odiar o espírito de Gravidade que tenho alguma coisa de ave; na verdade, sou seu inimigo mortal, abonado, jurado! Para onde, então, não voou já o meu ódio, desencaminhado?

«A este respeito poderia fazer uma canção - e cantá-la-ia, se bem que, sozinho numa sala vazia, só posso cantar para os meus próprios ouvidos.

«Outros cantores precisam de uma sala cheia para sentir a garganta harmoniosa, a mão eloquente, o coração alerta, o olhar expressivo – mas não me pareço com eles.»



in “Assim Falava Zaratustra”





domingo, 16 de setembro de 2018

CESÁRIO VERDE - Contrariedades



CESÁRIO VERDE
(Lisboa, Portugal, 1855 - 1886)
Poeta

***
Os seus sentidos permanentemente despertos, inebriados sobretudo pela cor, prendem-no ao imediato da Natureza luminosa e das pessoas recortadas na paisagem, tanto rural como citadina, não o impedindo, porém, de ser sensível às injustiças sociais. Deve-se-lhe a renovação impressionista da linguagem poética, o que faz dele um precursor de Fernando Pessoa e do modernismo português.


in “Livro dos Portugueses”       

***


Contrariedades

Eu hoje estou cruel, frenético, exigente;
Nem posso tolerar os livros mais bizarros.
Incrível! Já fumei três maços de cigarros
Consecutivamente.

Dói-me a cabeça. Abafo uns desesperos mudos:
Tanta depravação nos usos, nos costumes!
Amo, insensatamente, os ácidos, os gumes
E os ângulos agudos.

Sentei-me à secretária. Ali defronte mora
Uma infeliz, sem peito, os dois pulmões doentes;
Sofre de faltas de ar, morreram-lhe os parentes
E engoma para fora.

Pobre esqueleto branco entre as nevadas roupas!
Tão lívida! O doutor deixou-a. Mortifica.
Lidando sempre! E deve conta à botica!
Mal ganha para sopas...

O obstáculo estimula, torna-nos perversos;
Agora sinto-me eu cheio de raivas frias,
Por causa dum jornal me rejeitar, há dias,
Um folhetim de versos.

Que mau humor! Rasguei uma epopeia morta
No fundo da gaveta. O que produz o estudo?
Mais uma redacção, das que elogiam tudo,
Me tem fechado a porta.

A crítica segundo o método de Taine
Ignoram-na. Juntei numa fogueira imensa
Muitíssimos papéis inéditos. A Imprensa
Vale um desdém solene.

Com raras excepções, merece-me o epigrama.
Deu meia-noite; e a paz pela calçada abaixo,
Um sol-e-dó. Chovisca. O populacho
Diverte-se na lama.

Eu nunca dediquei poemas às fortunas,
Mas sim, por deferência, a amigos ou a artistas.
Independente! Só por isso os jornalistas
Me negam as colunas.

Receiam que o assinante ingénuo os abandone,
Se forem publicar tais coisas, tais autores.
Arte? Não lhes convém, visto que os seus leitores
Deliram por Zaccone.

Um prosador qualquer desfruta fama honrosa,
Obtém dinheiro, arranja a sua "coterie";
E a mim, não há questão que mais me contrarie
Do que escrever em prosa.

A adulação repugna aos sentimentos finos;
Eu raramente falo aos nossos literatos,
E apuro-me em lançar originais e exactos,
Os meus alexandrinos...


E a tísica? Fechada, e com o ferro aceso!
Ignora que a asfixia a combustão das brasas,
Não foge do estendal que lhe humedece as casas,
E fina-se ao desprezo!

Mantém-se a chá e pão! Antes entrar na cova.
Esvai-se; e todavia, à tarde, fracamente,
Oiço-a cantarolar uma canção plangente
Duma opereta nova!

Perfeitamente. Vou findar sem azedume.
Quem sabe se depois, eu rico e noutros climas,
Conseguirei reler essas antigas rimas,
Impressas em volume?

Nas letras eu conheço um campo de manobras;
Emprega-se a "réclame", a intriga, o anúncio, a "blague",
E esta poesia pede um editor que pague
Todas as minhas obras...

E estou melhor; passou-me a cólera. E a vizinha?
A pobre engomadeira ir-se-á deitar sem ceia?
Vejo-lhe a luz no quarto. Inda trabalha. É feia...
Que mundo! Coitadinha!


Imagem: desenho de Columbano Bordalo Pinheiro

sábado, 15 de setembro de 2018

ISTVÁN ÖRKÉNY – Os nossos filhos



ISTVÁN ÖRKÉNY
(Budapeste, Hungria, 1912 –1979)
Escritor

***
Foi uma das figuras mais importantes da dramaturgia moderna húngara e um dos nomes mais célebres da literatura húngara no estrangeiro estando traduzido em vários idiomas. Os seus textos breves deixam ao leitor múltiplas interpretações sobre o seu sentido, e onde quase sempre se evocam situações banais fazendo uso de um humor fortemente satírico, procurando a crítica social e política.

***

OS NOSSOS FILHOS

Era uma vez uma viúva velhinha e essa viúva tinha dois belos filhos. Um, o mais velho, empregou-se num navio cuja primeira viagem o levou ao oceano Pacífico. O que lhe aconteceu, ninguém pode dizer, porque desapareceu no mar sem deixar vestígios.

O mais novo ficou em casa. Mas, uma vez, quando a sua mãe o mandou comprar vermicida (à farmácia, que é a sétima casa a seguir à sua), nunca mais voltou. Também ele desapareceu para sempre.

Esta é a realidade dos factos. Mas nos contos as viúvas costumam ter três filhos. É sempre o terceiro que consegue o seu lugar ao sol.