domingo, 9 de setembro de 2018

CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE – Capítulo do Gênesis



CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE
(Itabira, Brasil, 1902 - Rio de Janeiro, 1987)
Poeta

***
Capítulo do Gênesis

1.  E o Senhor, vendo que os homens não melhoravam,
antes se tornavam piores, decidiu mandar-lhes uma chuva de advertência; e com isso lhes manifestava seu enfado, e que outro dilúvio não estaria fora de suas cogitações.
2. E a chuva começou a cair, a princípio alegre com seu destino de chuva; insistente, depois, e zangada, fazendo aluir a morada dos homens.
3.  E os caminhos se encheram de lama, e na lama passavam cadáveres de criancinhas com suas bonecas; e também boiavam corpos de velhos e de moços na fluorescência do amor.
4.  E as águas cumpriram seu serviço e se retiraram ao cabo de um dia; e quedou sobre a terra uma dor feita de mil dores.
5.  Nisso vieram os sábios da cidade e puseram-se a fazer a exegese da catástrofe; e concluíram que todo mal provinha de certas povoações altaneiras, desligadas do corpo social, a que se dava o nome de favelas.
6.  As quais dependuradas na crista e no declive dos morros, vertiam sobre a cidade, com algumas notas de música, seus detritos e sua miséria, travando o escoamento das águas.
7.  E individualmente se chamavam Querosene, Escondidinho, Pasmado, Pretos Forros, Cabrito, Vintém, Cantagalo, Curral das Éguas, Nheco, Borel, Esqueleto, Catacumba e apelativos que tais.
8.  E mereciam ser destruídas pelo que se escolheu a Favela da Catacumba, de nome exemplar, para ser arrasada primeiro que as outras, e das outras a hora soaria a seu tempo.
9.  E milicianos, na calada da noite, subiram até lá e arrasaram-na, ateando fogo aos escombros e os sábios se persuadiram de que haviam acabado com a causa primeira da enchente.
10.   Embora não houvessem acabado com a causa maior das favelas; e os favelados foram recolhidos a uma casa de boa vontade, enquanto seus pertences tomavam rumo de uma praça de jogos, Maracaná chamada.
11.   E havendo entre esses alguns tamboretes e cadeiras, bem podiam ser aproveitados para assento de amadores das grandes justas e atletas, que eram a glória da cidade.
12.   E reinou sobre o morro um silêncio catacumbal, que nem a voz de um papagaio bicava.
13.   E seus amigos moradores, depois de alguns dias na casa de asilo, subiram a outro morro ainda virgem e lá plantaram seus fogos e entoam sua música.
14.   E outra vez choverá o aborrecimento de Deus, e eles serão responsabilizados, expulsos, apartados de seus bens, e descobrirão novos terrenos de cume, de onde voltarão a ser tangidos.
15.   E milicianos em número crescente desalojarão ainda mais numerosos catacumbeiros.
16.   A menos que o Senhor, em sua ira, se lembre de consumar a ameaça e promova a magna chuva final.
17.   Da qual ninguém escapará; e depois dessa ninguém será acusado e molestado por ninguém.
18.   A menos ainda que, a poder de palavras e subtis manobras, os sábios consigam desviar a atenção do Senhor para outros mundos ainda mais errados que este.




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