sexta-feira, 30 de novembro de 2018

ADÉLIA PRADO - Casamento


ADÉLIA PRADO
(Divinópolis, Brasil, 1935)
Poetisa, dramaturga, filósofa

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A escritora mostra como as palavras simples podem emocionar e criar novamente aquilo que o tempo já levou.
Em prosa ou verso, Adélia abre os olhos do leitor para o que há de sagrado nas coisas mais triviais. Sem prescindir delas, Adélia tornou-se uma das autoras nacionais mais requisitadas em eventos sobre literatura, no Brasil ou em países como Cuba, na Alemanha ou nos EUA, e sua obra tornou-se objecto de estudos em universidades como Princeton.

in “Releituras” (excerto)

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CASAMENTO

Há mulheres que dizem:
Meu marido, se quiser pescar, pesque,
mas que limpe os peixes.
Eu não. A qualquer hora da noite me levanto,
ajudo a escamar, abrir, retalhar e salgar.
É tão bom, só a gente sozinhos na cozinha,
de vez em quando os cotovelos se esbarram,
ele fala coisas como “este foi difícil”
“prateou no ar dando rabanadas”
e faz o gesto com a mão.
O silêncio de quando nos vimos a primeira vez
atravessa a cozinha como um rio profundo.
Por fim, os peixes na travessa,
vamos dormir.
Coisas prateadas espocam:
somos noivo e noiva.




quinta-feira, 29 de novembro de 2018

ARTHUR SCHOPENAUER – As vantagens de ser um pobre diabo


ARTHUR SCHOPENAUER
(Polónia, 1788 - Alemanha, 1860)
Filósofo
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AS VANTAGENS DE SER UM POBRE DIABO

Para aquele que não é nobre, mas dotado de algum talento, ser um pobre-diabo é uma verdadeira vantagem e uma recomendação. Pois o que cada um mais procura e aprecia, não apenas na simples conversação, mas sobretudo no serviço público, é a inferioridade do outro. 

Ora, só um pobre-diabo está convencido e compenetrado em grau suficiente da sua completa, profunda, decisiva, total inferioridade e da sua plena insignificância e ausência de valor, tal como exige o caso. 

Apenas ele, portanto, inclina-se amiúde e por bastante tempo, e apenas a sua reverência atinge plenos noventa graus; apenas ele suporta tudo e ainda sorri; apenas ele conhece como obras-primas, em público, em voz alta ou em grandes caracteres, as inépcias literárias dos seus superiores ou dos homens influentes em geral; apenas ele sabe como mendigar; por conseguinte, apenas ele se pode tornar um iniciado, a tempo, portanto, na juventude, naquela verdade oculta que Goethe nos revelou nos seguintes termos: 

Sobre a baixeza  
Que ninguém se lamente:  
Pois ela é a potência,  
Não importa o que te digam.

Em contrapartida, quem já nasceu com uma fortuna que lhe garanta a existência irá posicionar-se, na maioria das vezes, de modo contestário: ele está habituado a caminhar de cabeça erguida

Não aprendeu aquelas artes da subserviência; talvez até se sirva de eventuais talentos, cuja inadequação, diante do medíocre e servil, é o que deveria compreender. É até mesmo capaz de notar a inferioridade daqueles situados acima dele, e se, enfim, ocorrerem indignidades, torna-se recalcitrante e desconfiado. 

Mas não é assim que alguém se consegue impor no mundo; antes, talvez, possa ocorrer-lhe dizer como o atrevido Voltaire: Temos apenas dois dias para viver: não vale a pena passá-los arrastando-se aos pés de patifes desprezíveis

Infelizmente, diga-se de passagem, patifes desprezíveis é um predicado para o qual, neste mundo, existe um número assustador de sujeitos.



in “Aforismos para a Sabedoria de Vida”

 





quarta-feira, 28 de novembro de 2018

VINICIUS DE MORAES - Pátria Minha



VINICIUS DE MORAES
(Rio de Janeiro, Brasil, 1913 - 1980)
Poeta, cantor e compositor

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Pátria Minha

A minha pátria é como se não fosse, é íntima
Doçura e vontade de chorar; uma criança dormindo
É minha pátria. Por isso, no exílio
Assistindo dormir meu filho
Choro de saudades de minha pátria.

Se me perguntarem o que é a minha pátria direi:
Não sei. De fato, não sei
Como, por que e quando a minha pátria
Mas sei que a minha pátria é a luz, o sal e a água
Que elaboram e liquefazem a minha mágoa
Em longas lágrimas amargas.

Vontade de beijar os olhos de minha pátria
De niná-la, de passar-lhe a mão pelos cabelos…
Vontade de mudar as cores do vestido (auriverde!) tão feias
De minha pátria, de minha pátria sem sapatos
E sem meias pátria minha
Tão pobrinha!

Porque te amo tanto, pátria minha, eu que não tenho
Pátria, eu semente que nasci do vento
Eu que não vou e não venho, eu que permaneço
Em contacto com a dor do tempo, eu elemento
De ligação entre a acção e o pensamento
Eu fio invisível no espaço de todo adeus
Eu, o sem Deus!

Tenho-te no entanto em mim como um gemido
De flor; tenho-te como um amor morrido
A quem se jurou; tenho-te como uma fé
Sem dogma; tenho-te em tudo em que não me sinto a jeito
Nesta sala estrangeira com lareira
E sem pé-direito.

Ah, pátria minha, lembra-me uma noite no Maine, Nova Inglaterra
Quando tudo passou a ser infinito e nada terra
E eu vi alfa e beta de Centauro escalarem o monte até o céu
Muitos me surpreenderam parado no campo sem luz
À espera de ver surgir a Cruz do Sul
Que eu sabia, mas amanheceu…

Fonte de mel, bicho triste, pátria minha
Amada, idolatrada, salve, salve!
Que mais doce esperança acorrentada
O não poder dizer-te: aguarda…
Não tardo!

Quero rever-te, pátria minha, e para
Rever-te me esqueci de tudo
Fui cego, estropiado, surdo, mudo
Vi minha humilde morte cara a cara
Rasguei poemas, mulheres, horizontes
Fiquei simples, sem fontes.

Pátria minha… A minha pátria não é florão, nem ostenta
Lábaro não; a minha pátria é desolação
De caminhos, a minha pátria é terra sedenta
E praia branca; a minha pátria é o grande rio secular
Que bebe nuvem, come terra
E urina mar.

Mais do que a mais garrida a minha pátria tem
Uma quentura, um querer bem, um bem
Um libertas quae sera tamem
Que um dia traduzi num exame escrito:
“Liberta que serás também”
E repito!

Ponho no vento o ouvido e escuto a brisa
Que brinca em teus cabelos e te alisa
Pátria minha, e perfuma o teu chão…
Que vontade de adormecer-me
Entre teus doces montes, pátria minha
Atento à fome em tuas entranhas
E ao batuque em teu coração.

Não te direi o nome, pátria minha
Teu nome é pátria amada, é patriazinha
Não rima com mãe gentil
Vives em mim como uma filha, que és
Uma ilha de ternura: a Ilha
Brasil, talvez.

Agora chamarei a amiga cotovia
E pedirei que peça ao rouxinol do dia
Que peça ao sabiá
Para levar-te presto este avigrama:
Pátria minha, saudades de quem te ama…







terça-feira, 27 de novembro de 2018

ISTVÁN ÖRKÉNY – Dignidade profissional



ISTVÁN ÖRKÉNY
(Budapeste, Hungria, 1912 –1979)
Escritor

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Foi uma das figuras mais importantes da dramaturgia moderna húngara e um dos nomes mais célebres da literatura húngara no estrangeiro estando traduzido em vários idiomas. Os seus textos breves deixam ao leitor múltiplas interpretações sobre o seu sentido, e onde quase sempre se evocam situações banais fazendo uso de um humor fortemente satírico, procurando a crítica social e política.

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DIGNIDADE PROFISSIONAL

Eu sou um carácter forte!
Sei dominar-me.
Não o deixava transparecer, mas estavam em jogo o trabalho de longos anos, o reconhecimento do meu talento, todo o meu futuro.

- Sou um artista imitador – disse.
- O que é que sabe? – perguntou o director.
- Imito o canto dos pássaros.
- Infelizmente – fez um gesto de renúncia com a mão - , isso já passou de moda.
- Como? O arrulhar da rola? O chilrear do milheiro nos caniçais? O gorjeio da codorniz? O grito da gaivota? O cantarolar da cotovia?
- Passou – disse o director aborrecido.

Aquilo magoou-me. Mas penso que não o mostrei.

- Adeus – disse eu com cortesia, e saí a voar pela janela aberta.





segunda-feira, 26 de novembro de 2018

CARMEN DOLORES – O silêncio



CARMEN DOLORES
(Lisboa, Portugal, 1924)
Actriz, declamadora

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O silêncio

Desde muito nova, aprendi o silêncio. Ou foi ele que se me impôs? Ou foi ele que se tornou descoberta?

Foram tão importantes os momentos solitários que vivi voluntariamente longe de todos, habitando o silêncio da pequena sala que tornava o meu mundo povoado de sonhos, de figuras imaginadas, algumas saídas dos livros que lia com sofreguidão, personagens que eu pretendia materializar, dando-lhes ao mesmo tempo uma alma. Devia ser já a actriz a imaginar mil vidas para além da sua, insignificante ainda, sem história digna de ser contada.

Mas hoje continuo a precisar desse silêncio quente, para viver os meus sonhos acordados, para sentir os antigos sonhos, sempre mais sonhados que vividos. E a minha alma parece murmurar: deixem-me continuar sonhando, assim tranquila, neste silêncio que nunca me dói… neste silêncio que se me agarrou à pele, como uma alma gémea da minha…




in “Carmen Dolores – No Palco da Memória” (excerto)



domingo, 25 de novembro de 2018

ADÍLIA LOPES - Para um Vil Criminoso



ADÍLIA LOPES
(Lisboa, Portugal, 1960)
Poetisa, tradutora

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Adília Lopes apresenta-se nos seus versos como uma freira poetisa barroca portuguesa. O percurso meteórico da sua obra na literatura portuguesa poderia ser um case study de como uma poesia marginal alcança o coração do cânone literário ou sobre como deixar “prognósticos só para o final do jogo.” 

Autora de uma poesia inteligente e provocadora, Adília Lopes passou das primeiras edições de autor, obras de culto de uma minoria, a ser lida nas salas de aula de Literatura Portuguesa um pouco por todo o mundo. Este percurso tem o seu clímax na publicação de Dobra, a poesia reunida em obra completa, em 2009. 

Encontramos ecos da sua obra em vários campos da nossa contemporaneidade, sejam estes os da arte, com as gravuras que Paula Rego lhe dedica, ou o da música, em letras de bandas como "A Naifa".

in “Universidade de Coimbra” (excerto)
                  
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Para um Vil Criminoso

Fizeste-me mil maldades
e uma maldade muito grande
que não se faz
acho que devo ter sido a pessoa
a quem fizeste mais maldades
nem deves ter feito a ninguém
uma maldade tão grande
como a que me fizeste a mim
não sei se tens remorsos
tu dizes que não tens remorsos nenhuns
porque dizes que és um vil criminoso
para mim
eu também sou uma vil criminosa
mas não para ti
desconfio que tens o remorso
de ter alguns remorsos
por me teres feito mil maldades
e uma maldade muito grande
a maldade muito grande está feita
e não se faz
acho que essa maldade muito grande
nos aproximou um do outro
em vez de nos afastar
mas para mim é um drôle de chemin
e para ti também deve ser
mas com um vil criminoso nunca se sabe




in “Um Jogo Bastante Perigoso”




sábado, 24 de novembro de 2018

GONÇALVES DIAS – Canção do Exílio


GONÇALVES DIAS
(Caxias, Brasil,1823 — Guimarães, 1864)
Poeta, professor, crítico de história

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Em 1851, publicou os Últimos Cantos, encerrando a fase mais importante de sua poesia. A melhor parte da lírica dos Cantos inspira-se ora da natureza, ora da religião, mas sobretudo do seu carácter e temperamento. A sua poesia é eminentemente autobiográfica
Pela obra lírica e indianista, Gonçalves Dias é um dos mais típicos representantes do Romantismo brasileiro e forma, com José de Alencar na prosa, a dupla que conferiu carácter nacional à literatura brasileira.

in “Academia Brasileira de Letras” (excertos)
                                                 
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       CANÇÃO DO EXÍLIO

Minha terra tem palmeiras,
Onde canta o Sabiá;
As aves, que aqui gorjeiam,
Não gorjeiam como lá.

Nosso céu tem mais estrelas,
Nossas várzeas têm mais flores,
Nossos bosques têm mais vida,
Nossa vida mais amores.

Em cismar – sozinho – à noite –
Mais prazer encontro eu lá;
Minha terra tem palmeiras,
Onde canta o Sabiá.

Minha terra tem primores,
Que tais não encontro eu cá;
Em cismar – sozinho à noite –
Mais prazer encontro eu lá;
       Minha terra tem palmeiras,
Onde canta o Sabiá.

Não permita Deus que eu morra,
Sem que eu volte para lá;
Sem que eu desfrute os primores
Que não encontro por cá;
Sem qu'inda aviste as palmeiras,
Onde canta o Sabiá.




sexta-feira, 23 de novembro de 2018

HÁFIZ - A Rosa e o Rouxinol



HÁFIZ
(Irão, 1325 – 1389)
Poeta

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Foi poeta lírico e místico.
Grande parte da sua vida decorreu na época da dinastia de Mudáfar, destronada por Tamerlão. O seu famoso Diwan, que o elevou à categoria de um dos maiores poetas persas de todos os tempos, parece ter sido publicado em 1368 (a melhor edição é a de 1941: nela figuram 516 poemas).


in”Enciclopédia da Cultura”(excerto)

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A ROSA E O ROUXINOL

Fui de manhã cedo ao jardim colher a rosa; de súbito, a voz do rouxinol chegou aos meus ouvidos. O pobre sofre como eu por amor de uma rosa; e espalha pela planície o rumor das suas queixas.

Percorri o jardim, a pastagem, pensando nesse rouxinol e nessa rosa: a rosa é a amiga do espinho, e o rouxinol ama-a; um não recebe qualquer favor; o outro nada muda.

Ora o canto do rouxinol fazia sofrer tanto o meu coração que já não me restavam forças para continuar a ouvi-lo. Muita rosa desabrochou nesse jardim; ninguém pôde colher uma só sem se ferir com os espinhos.

Háfiz! não esperes nenhum prazer do movimento celeste, porque há nele mil defeitos, mas nem uma bondade.




Tradução: Maria Jorge Vilar de Figueiredo





quinta-feira, 22 de novembro de 2018

RAUL PROENÇA – Tradições no nosso país


RAUL PROENÇA
(Caldas da Rainha, Portugal, 1884 – Porto, 1941)
Escritor, bibliotecário, jornalista

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TRADIÇÕES DO NOSSO PAÍS

Tradições, no nosso país, são o empenho, a falta de iniciativa, de solidariedade, de coragem moral, o egoísmo dos homens de fortuna (que se sentem socialmente desobrigados quando deixam seus bens intactos ou acrescidos), o direito que cada um se reconhece, que lhe reconhecem os tribunais, de desatar aos tiros à autoridade legítima, porque não concorda com a maneira como ela decretou, por exemplo, sobre o aguilhão dos bois… 

Devemos amar, respeitar, consagrar, perpetuar essas tradições (que o são inegavelmente), só porque são tradições? O dever do mestre não consistiria – ao contrário do que pretende Barrès – em mostrar a sua fealdade, o seu dano, a sua ilegitimidade? Poderemos ter algum prazer ou alguma glória em continuar a ver desenrolar-se a «procissão nacional» dos subservientes, dos apáticos, dos pusilânimes, dos egoístas, dos inadaptados a toda a ordem social? 

Bons ou maus, os nossos gostos são nossos – prega Maurras. Que se diria, porém, de um pai que desejasse conservar os vícios dos seus filhos pelo fútil motivo de que são deles e não doutro? Decerto que a hipótese da loucura nos acudiria ao espírito. Contrariar os vícios nacionais – pode lá haver programa mais sensato, mais útil, mais benemerente de educação nacional?




in “Seara Nova” -1929