segunda-feira, 31 de dezembro de 2018

LUÍS VAZ DE CAMÕES - Ao Desconcerto do Mundo



LUÍS VAZ DE CAMÕES
(Não se conhece o local nem o ano em que nasceu, tendo morrido em Lisboa, entre 1579 e 1580)
Poeta
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O poema épico Os Lusíadas, publicado em 1572, é considerado o maior monumento literário da língua portuguesa. 

De excepcional riqueza é a Lírica camoniana, cujo valor literário iguala, se é que, não chega mesmo a superar, o de Os Lusíadas

A sua obra, tanto épica como lírica, constitui uma das mais altas manifestações do espírito português e em breve se transformou numa das constantes mais ricas da cultura portuguesa, atingindo a qualidade intemporal das grandes obras da literatura universal.


in “Livro dos Portugueses” (excerto)

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AO DESCONCERTO DO MUNDO

Os bons vi sempre passar
No Mundo graves tormentos;
E, para mais me espantar,
Os maus vi sempre nadar
Em mar de contentamentos.
Cuidando alcançar assim
O bem tão mal ordenado,
Fui mau, mas fui castigado.
Assim que, só para mim,
Anda o Mundo concertado.







domingo, 30 de dezembro de 2018

ÁLVARO BENAMOR - Actor



ÁLVARO BENAMOR
(Lisboa, Portugal, 1907 – 1976)
Actor, encenador, professor

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Estreou-se aos 21 anos, ainda estudante, na comédia “Os Três Ratões”, com a Companhia Rey Colaço Robles Monteiro, instalada na altura no Teatro da Trindade.

Especializa-se nos papéis de “galã”, tendo participado em peças dos mais variados e prestigiados autores.

Considerado um dos actores mais cultos no teatro português – estuda grego para melhor compreender os clássicos – foi um dos grandes intérpretes de Gil Vicente e um actor muito apreciado, graças à sua elegância e à sua dicção.

Foi director da rubrica “Teatro das Comédias”, na Emissora Nacional, professor de Arte de Representar e Encenação no Conservatório Nacional e, depois de um estágio na RAI, em Milão, realizador da RTP, na qual inaugurou o programa de Teatro em 1957.

Defensor de um teatro “poético e moralizante”, sonhava com o projecto de realizar teatro ao ar livre, nas épocas de verão, para as grandes massas populares, à margem daquilo a que chama “teatro burguês e comercializado”.

A partir de 1964, passa a encenar a Companhia Nacional de Ópera. 

Pisa pela última vez os palcos na peça Play Strindberg: A dança da morte em doze assaltos”, de Friedrich Durrenmatt, na Casa da Comédia em 1972.



in “Teatro Nacional D. Maria II” (excertos/adaptação)


sábado, 29 de dezembro de 2018

JAMES WRIGHT – Outonal

              
                                 JAMES WRIGHT
(EUA, 1927 - 1980)
Poeta

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OUTONAL

Macias, onde plana a sombra,
As pêras amarelas caem.
O longo galho vagarosamente leva
O ar do meu deleite.


Ar, ainda que nada, ar
Cai pesadamente sobre seus ombros
você carrega o peso dos cabelos
A cor do meu deleite.


Nem a côncava pêra,
Nem a folha em meio à grama,
Nem o vento que pranteia o ano
De encontro ao seu ouvido inclinado,
Farão alterar meu deleite:


Que mantém no alto a pêra
E canta ao longo do galho,
A tepidez do adocicado sol.
A canção do meu deleite
Sobre você colhida agora,
É sussurrada inteira, e se vai.





Tradução: André Caramuru Aubert 


     

sexta-feira, 28 de dezembro de 2018

GIUSEPPE GIOACHINO BELLI – A Vida do Homem


 GIUSEPPE GIOACHINO BELLI
(Roma, Itália, 1791 - 1863)
 Poeta

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A VIDA DO HOMEM

Nove meses no fedor, depois nas faixas,
por entre crostas, beijocas, lagrimonas,
depois à trela, na andadeira, em camisinha,
pára turras na testa, cueiros por calções.

Depois começa o tormento da escola,
o á bê cê, a vergasta e as frieiras,
a rubéola, a caca na cagadeira
e um pouco de escarlatina e de bexigas.

Depois o ofício, o jejum, a trabalheira,
a pensão a pagar, as prisões, o governo,
o hospital, as dívidas, a crica,

o sol no Verão, a neve no Inverno…
E por último – e que Deus nos abençoe –
vem a morte, e acaba no inferno.



Tradução: Alexandre O’Neill

 





quinta-feira, 27 de dezembro de 2018

ELIZABETH BARRETT BROWNING – Amo-te



ELIZABETH BARRETT BROWNING
(Reino Unido, 1806 – Itália, 1861)
Poetisa

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 AMO-TE 

Amo-te quanto em largo, alto e profundo
Minh'alma alcança quando, transportada, 
sente, alongando os olhos deste mundo,
os fins do ser, a graça entresonhada.

Amo-te a cada dia, hora e segundo
A luz do sol, na noite sossegada
e é tão pura a paixão de que me inundo
Quanto o pudor dos que não pedem nada.

Amo-te com a dor, das velhas penas
com sorrisos, com lágrimas de prece,
e a fé de minha infância, ingénua e forte. 

Amo-te até nas coisas mais pequenas,
por toda vida, e assim Deus o quiser
Ainda mais te amarei depois da morte.




quarta-feira, 26 de dezembro de 2018

MARIA TERESA HORTA - Segredo




MARIA TERESA HORTA
(Lisboa, Portugal, 1937)
Escritora, poetisa

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SEGREDO

Não contes do meu
vestido
que tiro pela cabeça

nem que corro os
cortinados
para uma sombra mais espessa

Deixa que feche o
anel
em redor do teu pescoço
com as minhas longas
pernas
e a sombra do meu poço

Não contes do meu
novelo
nem da roca de fiar

nem o que faço
com eles
a fim de te ouvir gritar









terça-feira, 25 de dezembro de 2018

A QUEM DEVERÍAMOS CULPAR?


A QUEM DEVERÍAMOS CULPAR?

Um dia, ao voltarem para casa, o mulá Nasrudin e sua mulher encontraram-na assaltada. Tudo o que poderia ser carregado foi.

- A culpa é sua – disse sua mulher -, porque deveria ter-se certificado, antes de sairmos, de que a casa estava trancada.

Os vizinhos bateram na mesma tecla:

- Você não trancou as janelas – disse um deles.

- Por que não se preveniu para uma situação como essa? – questionou o outro.

- As trancas estavam com defeito e você não as substituiu – disse um terceiro.

- Um momento – disse Nasrudin. – Certamente não sou o único culpado, sou?

- E a quem deveríamos culpar? – gritaram todos.

- Que tal os ladrões? – disse o mulá.




in “Parábolas e Contos de Nasrudin” – organizado por Alexander Rangel.


segunda-feira, 24 de dezembro de 2018

JOHAN ANDREAS DÈR MOUW – Sou Bramanista. Mas Estamos sem Criada



JOHAN ANDREAS DÈR MOUW
(Países Baixos, 1863 – 1919)
Poeta, filósofo

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SOU BRAMANISTA. MAS ESTAMOS SEM CRIADA

Em casa faço aquilo que inda sei fazer:
Largar as águas e em seguida a jarra de encher;
Mas não há toalha e fica a água derramada.

Não é tarefa de homem isso, me diz ela,
E eu sinto-me sem jeito e até mo levo a mal,
Ao ver pagar co'as maravilhas da panela
O modo aselha que é o meu habitual.

E não me canso de louvar a Quem se alarga
Em luz do mundo, em artes e em saber:

Sempre que a malga das papas ela me traga,
E eu veja as pontas dos dedos dela a fender,

sinto uma mesma, uma única adoração
por Bach, o Sol e Kant e os calos dessa mão.



Tradução: Fernando Venâncio
in “Uma Migalha na Saia do Universo” - Antologia da Poesia Neerlandesa do Século XX. 



domingo, 23 de dezembro de 2018

FEDERICO GARCÍA LORCA – 1910 (Intermédio)


FEDERICO GARCÍA LORCA
(Fuente Vaqueros, Espanha, 1898 - Granada, 1936)
Poeta, dramaturgo

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1910 (Intermédio )

Aqueles meus olhos de mil novecentos e dez
não viram enterrar os mortos
nem a feira de cinza de quem chora pela madrugada
nem o coração que treme encurralado como um cavalo-marinho.

Aqueles meus olhos de mil novecentos e dez
viram a parede branca onde mijavam as meninas,
o focinho do touro, a seta venenosa
e uma lua incompreensível que iluminava pelos cantos
os pedaços de limão seco sob o negro duro das garrafas.

Aqueles meus olhos no pescoço da égua,
no seio trespassado de Santa Rosa adormecida,
nos telhados do amor com gemidos e frescas mãos,
em um jardim onde os gatos comiam as rãs.

Desvão onde a velha poeira congrega estátuas e musgos.
Caixas que guardam silêncios de caranguejos devorados.
No lugar onde o sonho tropeçava com sua realidade.
Ali meus pequenos olhos.

Não me perguntem nada. Eu vi que as coisas
quando buscam seu curso encontram seu vazio.
Há uma dor de ocos pelo ar sem ninguém
e nos meus olhos criaturas vestidas. Sem nudez!


sábado, 22 de dezembro de 2018

MARIA ISABEL BARRENO - Célia e Celina



MARIA ISABEL BARRENO
(Lisboa, Portugal, 1939 – 2016)
Escritora, ensaísta, artista plástica
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Co-autora, em 1971, de Novas Cartas Portuguesas, esteve implicada no chamado Processo das Três Marias, tendo sido um dos nomes de vanguarda do movimento feminista português.

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Célia e Celina

(…) Era uma vez uma menina. Vivia com os pais, numa bela casa, junto a uma grande cidade. A casa ficava numa colina, e daí via-se a cidade toda. Atrás da colina começava uma enorme floresta. A menina ia passear à cidade, ia ao mercado, ia à escola. E passeava também na floresta. Gostava muito de andar sozinha no meio das árvores das flores e dos animais. Conversava com eles.

Um dia, viu uma fada. A fada não lhe disse nada, olhou-a e sorriu. A menina também não disse nada, não ficou admirada nem fez perguntas. Ela sabia que existiam fadas, embora ninguém falasse nisso. Naquela terra as pessoas não falavam nas coisas mais importantes, porque essas as coisas que existiam mesmo, e falando nessas coisas eles podiam sumir: ficariam escondidas debaixo das palavras, esquecidas.

A menina ficou olhando a fada, e ficou feliz, completamente feliz. Sentiu que a visão da fada seria sempre um sol na sua vida. O pai da menina era um comerciante abastado, e viajava muito por causa dos seus negócios. Não era muito rico, mas ganhava bastante dinheiro, e todos viviam bem naquela casa.

Um dia em que o pai da menina deveria voltar de uma das suas viagens, não voltou. A mãe e a menina esperaram-no toda a noite e ele não apareceu. No dia seguinte soube-se na cidade que andava um bando de salteadores atacando quem passava na estrada – na estrada por onde deveria ter regressado o pai da menina. (…)



in “Célia e Celina”  



sexta-feira, 21 de dezembro de 2018

TOMÁS RIBAS – Etnógrafo



TOMÁS RIBAS
(Alcáçovas, Portugal, 1918 – Lisboa, 1999)
Escritor, etnógrafo

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No Conservatório Nacional concluiu o curso especial de Dança e Coreografia. Foi professor no Teatro Nacional de S. Carlos.

Cultivou o jornalismo, fazendo crítica de teatro e de ballet. Praticou encenação coreográfica e teatral e participou em movimentos teatrais de vanguarda.

Estreou-se nas letras com o volume de poemas Monotonia, 1942.

Entre outras obras, publicou: Montanha Russa, O Cais das Colunas, Roberto e Melisandra, O Que É o Ballet, Danças Populares Portuguesas, Guia de Recolha de Danças Populares.




in “Grande Livro dos Portugueses”




quinta-feira, 20 de dezembro de 2018

MÁRIO DE SÁ-CARNEIRO – Maria Augusta



MÁRIO DE SÁ-CARNEIRO
(Lisboa, Portugal, 1890 - Paris, França, 1916)
Poeta, contista
                                   
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MARIA AUGUSTA
                                              A José Mântua

No primeiro andar do prédio nº 57 da Rua Augusta, vê-se uma tabuleta com os seguintes dizeres:

«AU NOUVEAU PARIS»

CONFECTIONS POUR DAMES

Mme ROSA SILVA.

Era nesta casa que, ainda há dois meses, trabalhava Maria Augusta… Hoje, não; hoje já não trabalha…

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História vulgar e banal, a desta rapariga.
Filha dum pedreiro e de uma criada de servir, que o seu nascimento transformara em «mulher a dias», viera ao mundo apenas como preço dum prazer…

Aos quatro anos, sua mãe, «para se ver livre dela» durante o dia, metera-a na mestra. Saíra aos oito, sabendo o alfabeto: «- Nada, que numa modista já podia ganhar um tostãozito por semana.»

Por isso, entrou para casa duma vizinha que trabalhava para as mulheres dos operários do bairro. Passava todo o dia a fazer recados: ia comprar dez reis de chá, pôr o caixote do lixo à porta, levar um vestido, ouvir a descompostura inevitável: «- Faça favor de dizer lá que a saia ficou uma porcaria! Os forros não prestam para nada! Assim não me serve! O que não falta é modistas!»

Passados seis meses, saíra desta casa e fora para outra; depois para outra, para muitas mais, até que aos 17 anos se encontrara no «importante atelier «Au noveau Paris» - mal parecia que um estabelecimento frequentado pela sociedade elegante, tivesse um nome português – ganhando 17 vinténs diários: tantos vinténs quantos os seus anos…
**

Era muito formosa. Os seus sedosos e abundantes cabelos negros, coroavam um rosto encantador. Os seus lábios vermelhos e viçosos, pedindo beijos ardentes, serviam de cofre a uns pedacitos do mais puro marfim. A sua pele, branca e acetinada, era o invólucro dum corpo escultural e exuberante de vida…

**

Um dia, na rua, um homem murmurou-lhe ao ouvido a seguinte frase:

- «Como é linda!»

Maria, ao chegar a casa, pegou no seu pequeno espelho, colocou-o diante dela e, passado um quarto d´hora, estava finalmente convencida de que lhe haviam dito a verdade! Sim, não havia dúvida, era «muito bonita» …

***

Como todas as mulheres, adorava os vestidos e as jóias.
Uma vez um sujeito, idoso já, ofereceu-lhe, diante duma ourivesaria, um anelzito de dois mil réis. Ela aceitou entusiasmada. O sujeito idoso pediu-lhe, em paga, um beijo. Ela deu-lhe vinte.

Passados dias, um garboso mancebo convidou-a para o acompanhar ao teatro. Havia de recusar semelhante gentileza? Por certo que não…

Findo o espectáculo, o seu companheiro meteu-se num trem com ela e, Maria, como não podia negar coisa alguma àquele que lhe proporcionara três horas tão agradáveis, deu-lhe tudo quanto ele lhe pediu…

***

Vertiginosamente foi caminhando para o terrível e irremediável «fim» …

Os seus lábios, hoje, já não são tão vermelhos, embora os cubra com carmim; a sua pele já não é tão fina e tão branca, embora a esfregue todos os dias com glicerina, cobrindo-a depois com pó d´arroz. No entanto, Maria Augusta, hoje, já não trabalha…




in "Primeiros Contos"