sexta-feira, 31 de janeiro de 2020

CANCIONEIRO POPULAR – Sola, sapato





SOLA, SAPATO


Sola, sapato,
Rei, rainha
Foi ao mar
Pescar sardinha
Para o filho
Do Luís,
Que está preso
Pelo nariz.
Salta a pulga
Da balança,
Dá um pulo
E vai p´ra França.
Os cavalos
A correr,
As meninas
A aprender,
A que for
Mais bonita
É que se há-de
Esconder.




Cancioneiro Popular Português – José Leite de Vasconcelos
Pintura: Ludwig Knaus




quinta-feira, 30 de janeiro de 2020

MÁRIO DIONÍSIO – Foi hoje a enterrar




MÁRIO DIONÍSIO
(Lisboa, Portugal, 1916 - 1993)
Poeta, romancista, pintor, professor

***
Desempenhou um papel importante na teorização do Neorrealismo, movimento literário que, pelas décadas de 40-50, à luz do materialismo histórico, valorizou a dimensão ideológica e social do texto literário, enquanto instrumento de intervenção e de consciencialização e alcance do movimento neorrealista.

in “ Lusofonia poética”
                                 

***

FOI HOJE A ENTERRAR
   (Janeiro de 81)

Foi hoje a enterrar
o velho torcionário
com honras militares

Cercavam-no os seus pares
impunemente
de morte ameaçando
quem tal via

Do crime funcionário
chegou ao fim aproveitando
a apatia conivente
instituída

A teia da vergonha entretecida
de espanto empesta o ar

Viva a democracia!



quarta-feira, 29 de janeiro de 2020

EÇA DE QUEIROZ – Os Maias



EÇA DE QUEIROZ
(Portugal, 1845 – França, 1900)
Escritor

***

OS MAIAS

Com o subtítulo «Episódios da vida romântica», este é um dos mais notáveis romances de Eça de Queirós e, provavelmente, de toda a literatura portuguesa.

A história do amor incestuoso de Carlos da Maia com Maria Eduarda é o pretexto para dar um retrato desapiedado da Lisboa do fim do século, com as suas personagens da cena política e literária, em contraponto com o velho Afonso da Maia, cuja morte representa o fim do Portugal antigo.

O lado satírico contribuiu para as fortes críticas que lhe foram feitas na época, designadamente porque algumas das personagens foram identificadas com figuras reais, como é o caso de Tomás de Alencar com o poeta Bulhão Pato.




Fonte: ”Dicionário Conhecimento Essencial”
Imagem: Eça de Queirós por Rafael Bordalo Pinheiro




terça-feira, 28 de janeiro de 2020

JORGE DE SENA – Independência




JORGE DE SENA
(Lisboa, Portugal, 1919 - Califórnia, EUA, 1978)
Poeta, dramaturgo, crítico, tradutor

***

INDEPENDÊNCIA 

Recuso-me a aceitar o que me derem.

Recuso-me às verdades acabadas;
recuso-me, também, às que tiverem
pousadas no sem-fim as sete espadas.

Recuso-me às espadas que não ferem

e às que ferem por não serem dadas.
Recuso-me aos eus-próprios que vierem
e às almas que já foram conquistadas.

Recuso-me a estar lúcido ou comprado

e a estar sozinho ou estar acompanhado.
Recuso-me a morrer. Recuso a vida.

Recuso-me à inocência e ao pecado

como a ser livre ou ser predestinado.
Recuso tudo, ó Terra dividida!



segunda-feira, 27 de janeiro de 2020

MIGUEL TORGA - O Encanto da Vida




MIGUEL TORGA
(São Martinho de Anta, Portugal, 1907 - Coimbra, 1995)
Poeta, escritor

***

O ENCANTO DA VIDA

Todas as noites acordado até desoras, à espera da última cena de pancadaria num jogo de futebol, do último insulto num debate parlamentar, do último discurso demagógico num comício eleitoral, da última pirueta dum cabotino entrevistado, da última farsa no palco internacional. Crucificações masoquistas, que a prudência desaconselha e a imprudência impõe. Vou deste mundo farto de o conhecer e faminto de o descobrir.

Mas não há perspicácia, nem constância de atenção capazes de lhe prefigurar os imprevistos. O que acontece hoje excede sempre o que sucedeu ontem. A violência, o facciosismo, a ambição de poder, a crueldade e o exibicionismo não têm limites. Felizmente que a abnegação, a generosidade e o altruísmo também não. E o encanto da vida é precisamente esse: nenhum excesso nela ser previsível. Nem no mal nem no bem. E não me canso de o verificar, de surpresa em surpresa, à luz dos acontecimentos.

Quando julgo que estou devidamente informado sobre o amor, sobre o ódio, sobre a santidade, sobre a perfídia, sobre as virtudes e os defeitos humanos, acabo por concluir que soletro ainda o á-bê-cê da realidade. Cabeçudo como sou, teimo na aprendizagem. Hoje fizeram-me a revelação surpreendente de que um avarento meu conhecido, que durante muitos anos procedeu como tal e, como tal, o tratei sempre de pé atrás, generosa e secretamente subsidiava um asilo de infância desvalida.




in “Diário” (1993) – (citador)



domingo, 26 de janeiro de 2020

A INQUISIÇÃO EM PORTUGAL (IV)





A INQUISIÇÃO EM PORTUGAL (IV)


Um miserável blasfemo foi arrastado para o adro, assassinado, e queimado o seu cadáver. O tumulto atraíra maior concurso de povo, cujo fanatismo um frade excitava com violentas declamações. Dois outros frades, um com uma cruz, outro com um crucifixo arvorado, saíram então do mosteiro, bradando heresia, heresia

O rugido do tigre popular não tardou a reboar por toda a cidade. As marinhagens de muitos navios estrangeiros no rio vieram em breve associar-se à plebe amotinada. Seguiu-se um longo drama de anarquia. Os cristãos-novos que giravam pelas ruas desprevenidos eram mortos ou malferidos e arrastados, às vezes semivivos, para as fogueiras que rapidamente se tinham armado, tanto no Rossio como nas ribeiras do Tejo. 

O juiz do crime, que com os seus oficiais pretendera conter o motim, apedrejado e perseguido, teria sido queimado com a própria habitação, se um raio de piedade não houvera momentaneamente tocado o coração do tropel furioso que o perseguia, ao verem as lágrimas da sua esposa, que, desgrenhada, implorava piedade. Os dois frades enfureciam as turbas com os seus brados, e guiavam-nas com actividade infernal naquele tremendo labor. O grito de revolta era:   Queimai-os!
Quantos cristãos-novos encontravam arrastavam-nos pelas ruas e iam lançá-los nas fogueiras da Ribeira e do Rossio. Nesta praça foram queimadas nessa tarde trezentas pessoas, e às vezes, num e noutro lugar, ardiam a um tempo grupos de quinze ou vinte indivíduos. A ebriedade daquele bando de canibais não se desvaneceu com o repouso da noite. 

Na segunda-feira as cenas da véspera repetiram-se com maior violência, e a crueldade da plebe, incitada pelos frades, revestiu-se de formas ainda mais hediondas. 

Acima de quinhentas pessoas tinham perecido na véspera: neste dia passaram de mil. Segundo o costume, ao fanatismo tinham vindo associar-se todas as ruins paixões, o ódio, a vingança covarde, a calúnia, a luxúria, o roubo. As casas dos cristãos-novos acometidas e entradas. Metiam a ferro homens, mulheres e velhos: as crianças arrancavam-nas dos peitos das mães e, pegando-lhes pelos pés, esmagavam-lhe o crânio nas paredes dos aposentos. Depois saqueavam tudo.

Até terça-feira à tarde o número dos mortos orçava por dois mil indivíduos.




in “História da Origem e Estabelecimento da Inquisição em Portugal” -  Alexandre Herculano


sábado, 25 de janeiro de 2020

O AMANTE DE LADY CHATTERLEY




O AMANTE DE LADY CHATTERLEY


Romance de D. H. LAWRENCE, escrito nos anos 20 mas que apenas foi publicado em Inglaterra em 1960, devido às cenas de sexo explícito e à linguagem obscena. 

Fala sobre o caso amoroso entre a mulher de um proprietário rural, aristocrático e intelectual mas inválido, e o seu couteiro, Oliver Mellors. Lady Chatterley engravida e, apesar do escândalo, decide virar as costas à sociedade respeitável em vez de negar o seu amor.

Em 1960, os editores ingleses da Penguin Books foram processados por terem publicado a obra, mas acabaram por obter a absolvição e, depois desse caso, as leis da censura na Inglaterra tornaram-se menos rígidas.





in “Dicionário do Conhecimento Essencial”

sexta-feira, 24 de janeiro de 2020

RAMIRO CALLE – A Faca



 RAMIRO CALLE
(Madrid, Espanha, 1943)
Escritor, mestre de yoga

***

A FACA


Era uma vez dois ascetas errantes. Um deles sentou-se a meditar e o outro puxou de uma faca para abrir um coco. De repente, veio um macaco e levou-lhe a faca. O asceta a quem o macaco havia roubado a faca correu para o seu companheiro, tirou-o da meditação e, angustiado, disse-lhe:

- Amigo, veio um macaco e sem que o pudesse impedir, roubou-me a faca.
- Se foi um macaco fico mais descansado – suspirou aliviado o outro asceta. – Se o tivesse roubado um homem é que seria verdadeiramente preocupante.



in “Os Melhores Contos Espirituais do Oriente”
 




quinta-feira, 23 de janeiro de 2020

EUGÉNIO DE ANDRADE - Requiem para PIER PAOLO PASOLINI



EUGÉNIO DE ANDRADE
(Fundão, Portugal, 1923 - Porto, 2005)
Poeta

***

REQUIEM PARA PIER PAOLO PASOLINI
Eu pouco sei de ti mas este crime
torna a morte ainda mais insuportável.
Era Novembro, devia fazer frio, mas tu
já nem o ar sentias, o próprio sexo
que sempre fora fonte agora apunhalado.
Um poeta, mesmo solar como tu, na terra
é pouca coisa; uma navalha, o rumor
de Abril podem matá-lo — amanhece,
os primeiros autocarros já passaram,
as fábricas abrem os portões, os jornais
anunciam greves, repressão, dois mortos na primeira
página, o sangue apodrece ou brilhará
ao sol, se o sol vier, no meio das ervas.
O assassino esse seguirá dia após dia
a insultar o amargo coração da vida;
no tribunal insinuará que respondera apenas
a uma agressão (moral) com outra agressão,
como se alguém ignorasse, excepto claro
os meritíssimos juízes, que as putas desta espécie
confundem moral com o próprio cu.
O roubo chega e sobra excelentíssimos senhores
como móbil de um crime que os fascistas,
e não só os de Salò, não se importariam de assinar.
Seja qual for a razão, e muitas há
que o Capital a Igreja e a Polícia
de mãos dadas estão sempre prontos a justificar,
Pier Paolo Pasolini está morto.
A farsa a nojenta farsa essa continua.

Imagem: retrato de Eugénio de Andrade por Carlos Botelho





quarta-feira, 22 de janeiro de 2020

FRANZ KAFKA – Carta ao pai



FRANZ KAFKA
(República Checa, 1883 - Áustria, 1924)
Escritor

***

CARTA AO PAI

Obras editada postumamente, onde o escritor revela o seu talento para entender a alma humana, as causas da relação inquietante com o seu pai, comerciante judeu, que sempre impôs aos filhos a sua visão do mundo. As suas emoções em relação ao pai oscilavam entre o ódio e a admiração. Esta extensa carta com mais de cem páginas manuscritas e que nunca foi enviada ao seu destinatário, é uma obra de arte, sobretudo na análise do relacionamento entre pais e filhos:


Querido pai

“Perguntaste-me há pouco tempo por que razão digo que tenho medo de ti. Como de costume, não soube o que responder, em parte precisamente devido ao medo que sinto de ti, mas também porque para fundamentar esse medo seria preciso entrar em muitos pormenores, que nem de longe conseguiria ter presentes ao falar. E se tento por este meio responder-te por escrito, o resultado continuará a ser muito incompleto, porque também ao escrever o medo e as suas consequências perturbam a comunicação contigo, e a escala da matéria se situa muito para além da minha memória e do meu entendimento.

(…) Para ti, as coisas colocavam-se mais ou menos assim: toda a tua vida trabalhaste muito, sacrificaste tudo pelos teus filhos, especialmente por mim, e por isso “vivi à grande”, tive toda a liberdade de estudar o que quis, nunca tive preocupações materiais nem de qualquer outra ordem.

(…) Eu era uma criança assustadiça, e apesar disso também teimosa, como são em geral as crianças. É verdade que a mãe me mimou, mas não acho que fosse uma criança especialmente difícil.

(…) Tu, só sabes tratar uma criança à luz da tua própria natureza, com força, barulho e cólera, e neste caso até achavas que era o método mais adequado, já que querias fazer de mim um rapaz cheio de força e audácia.

(…) Lembro-me, por exemplo, de quando nos despíamos juntos numa cabine. Eu, magro, fraco, esguio; tu, forte, alto, largo. Logo na cabine, já me sentia uma figura lamentável, não apenas perante ti, mas perante o mundo inteiro, porque tu eras para mim a medida de todas as coisas.

(…) Bastava eu mostrar algum interesse por alguém – coisa que, dada a minha natureza, não acontecia muitas vezes – para tu intervires brutalmente, sem querer saber dos meus sentimentos e sem respeitar a minha opinião, com injúrias, calúnias, humilhações.

(…) Como tinhas sempre muita fome e um gosto especial pela comida, engolias tudo depressa, quente e em grandes bocados, e eu, pequeno, tinha de me apressar, fazia-se um silêncio de cortar à faca, só interrompido por exclamações tuas: “Primeiro come-se, depois fala-se.”

(…) Era proibido roer os ossos – mas tu roías. Era proibido sorver o vinagre – mas tu sorvias.

(…) Por favor, pai, vê se me entendes bem: tudo isto não passaria de pequenas coisas insignificantes, que só se tornavam humilhantes para mim porque tu, o homem que era o meu exemplo maior, não obedecias aos mandamentos que me obrigavas a mim a seguir à risca.

(…) Reconheço que temos os nossos conflitos, mas há dois tipos de combate. O cavalheirismo, em que se defrontam dois adversários independentes, e cada um fica só, ganhando ou perdendo sozinho. E o combate do parasita, que não só pica como suga o sangue do outro para sobreviver. É o que se passa com o soldado profissional e contigo. És incapaz de viver, e para te poderes instalar sem preocupações, confortavelmente e sem remorsos, provas que fui eu quem te tirei a capacidade de viver e a meti no bolso. Que te importa agora se és ou não capaz de viver, se a responsabilidade é minha! ” 



Franz Kafka, in “Carta ao Pai” (excertos)






terça-feira, 21 de janeiro de 2020

FREEDOM – Um hino à liberdade



FREEDOM

A escultura FREEDOM, do artista Zenos Frudakis (EUA, 1951), localizada em Filadélfia, Pensilvânia, é um hino à luta pela liberdade. De acordo com o artista, “a composição se desenvolve da esquerda para a direita, começando com uma espécie de múmia/morte como figura cativa.

No segundo quadro, a figura, que lembra Rebellious Slave, de Michelangelo, começa a se agitar e luta para escapar.

A figura no terceiro quadro rasgou-se do muro que o mantinha cativo e está saindo, chegando para a liberdade.

No quarto quadro, a figura é inteiramente livre, vitoriosa, os braços estendidos, completamente afastada da parede. Ele evoca uma fuga da sua própria mortalidade.”

Frudakis pensou na possibilidade de interacção do público com a escultura. Não apenas a partir de uma reflexão intelectual, e mesmo emotiva, acerca da luta pela liberdade, mas também fisicamente.

Na escultura há um espaço no qual está escrito “Estou aqui”, para que as pessoas possam colocar-se dentro e passar a fazer parte da obra.

De modo criativo, a escultura propõe a libertação das limitações da mortalidade.





in ”Cultura e Arte Contemporânea”






segunda-feira, 20 de janeiro de 2020

FIAMA HASSE PAIS BRANDÃO – Os amigos que morrem



FIAMA HASSE PAIS BRANDÃO
(Lisboa, Portugal, 1938 - 2007)
Poetisa, dramaturga, tradutora


***

OS AMIGOS QUE MORREM

Os amigos que morrem são arbóreos,
plantados e memoráveis como freixos.
Um freixo, que vejo entre árvores
como a aura, o tronco novo
sulcado de rasgões, a raiz curta
comparável à memória viva enterrada.
Têm uma única forma até à morte, próximos do Sol,
que torna as outras árvores mais ténues que os isolados freixos.






domingo, 19 de janeiro de 2020

A INQUISIÇÃO EM PORTUGAL (III)




A INQUISIÇÃO EM PORTUGAL (III)


Compunha-se o Conselho do Santo Ofício do inquisidor-geral, seu presidente, que provia todos os lugares. E de certo número de deputados, denominados do Conselho Geral, de secretário, porteiro, solicitador e contínuo. Era-lhe adjunto um grande número de teólogos, frades e clérigos para reverem as obras que se queriam imprimir e até encadernar sendo manuscritas, bem como para censurar as que fora já vinham impressas – estes tais chamavam-se qualificadores.

Havia espalhado por todo o Reino um exército avulso dos intitulados familiares do Santo Ofício, e estes eram os seus espiões e esbirros gratuitos para as prisões e espoliações que se faziam por ordem do Santo Tribunal – e quantas vezes sem ela?… 

De tamanha honra e distinção se consideravam estes lugares que todos, sem excepção a ela aspiravam. Duques, condes e marqueses o eram e também prendiam quando os mandavam – chegava a tal ponto o excesso de demência dos portugueses nesta época infausta que em suas árvores genealógicas faziam notar uma tão significante mas ignominiosa qualidade de esbirro.

Para ser admitido ao grémio do Santo Ofício, ainda no mais ínfimo emprego, precisava-se provar até à evidência o ser cristão-velho de todos os quatro costados e o mesmo se entendia da pobre mulher, sendo casado. E se o miserável que tal empreendia o não levava a cabo, ficava olhado como de raça infecta e todos fugiam dele.




in “História dos Principais Actos e Procedimentos da Inquisição em Portugal” – José Lourenço D. de Mendonça e António Joaquim Moreira.

Imagem: frontispício do Regimento do Santo Ofício da Inquisição dos Reynos de Portugal (Biblioteca Geral da Universidade de Coimbra). 



sábado, 18 de janeiro de 2020

PEDRO HOMEM DE MELLO – Povo que lavas no rio



PEDRO HOMEM DE MELLO
(Porto, Portugal, 1904 - 1984)
Poeta

***

Estudioso do folclore português, dedicou a este campo numerosos programas de televisão e ensaios. As raízes do seu lirismo bem português mergulham na própria vivência íntima e na profunda sintonia com o povo, cuja alma se lhe abria através do folclore, tendo por cenário a paisagem nortenha.

in “Portugal Século XX”
                                          ***

POVO QUE LAVAS NO RIO


Povo que lavas no rio,
Que vais às feiras e à tenda,
Que talhas com teu machado
As tábuas do meu caixão,
Pode haver quem te defenda,
Quem turve o teu ar sadio,
Quem compre o teu chão sagrado,
Mas a tua vida, não!

Meu cravo branco na orelha!
Minha camélia vermelha!
Meu verde manjericão!
Ó natureza vadia!
Vejo uma fotografia...
Mas a tua vida, não!

Fui ter à mesa redonda,
Bebendo em malga que esconda
O beijo, de mão em mão...
Água pura, fruto agreste,
Fora o vinho que me deste,
Mas a tua vida, não!

Procissões de praia e monte,
Areais, píncaros, passos
Atrás dos quais os meus vão!
Que é dos cântaros da fonte?
Guardo o jeito desses braços...
Mas a tua vida, não!

Aromas de urze e de lama!
Dormi com eles na cama...
Tive a mesma condição.
Bruxas e lobas, estrelas!
Tive o dom de conhecê-las...
Mas a tua vida, não!

Subi às frias montanhas,
Pelas veredas estranhas
Onde os meus olhos estão.
Rasguei certo corpo ao meio...
Vi certa curva em teu seio...
Mas a tua vida, não!

Só tu! Só tu és verdade!
Quando o remorso me invade
E me leva à confissão...
Povo! Povo! eu te pertenço.
Deste-me alturas de incenso,
Mas a tua vida, não!

Povo que lavas no rio,
Que vais às feiras e à tenda,
Que talhas com teu machado,
As tábuas do meu caixão,
Pode haver quem te defenda,
Quem turve o teu ar sadio,
Quem compre o teu chão sagrado,
Mas a tua vida, não!

sexta-feira, 17 de janeiro de 2020

ROBERT LEE FROST – A Estrada que não foi seguida



ROBERT LEE FROST
(São Francisco, EUA, 1874 - Boston, 1963)
Poeta

***

Embora o seu trabalho seja principalmente associado à vida e à paisagem da Nova Inglaterra - e embora ele fosse um poeta das formas e métricas tradicionais dos versos que permaneciam firmemente indiferentes aos movimentos poéticos e às modas de seu tempo - Frost é tudo menos um poeta regional. 

Autor de pesquisas e muitas vezes obscuras meditações sobre temas universais, ele é um poeta moderno na sua adesão à linguagem como ela é falada, na complexidade psicológica de seus retratos e no grau em que seu trabalho é imbuído de ambiguidade e ironia.


Fonte: “Academia de Poetas Americanos”

***

A ESTRADA QUE NÃO FOI SEGUIDA


Duas estradas separavam-se num bosque amarelo,
Que pena não poder seguir por ambas
Numa só viagem: muito tempo fiquei
Mirando uma até onde enxergava,
Quando se perdia entre os arbustos;

Depois tomei a outra, igualmente bela
E que teria talvez maior apelo,
Pois era relvada e fora de uso;
Embora, na verdade, o trânsito
As tivesse gasto quase o mesmo,

E nessa manhã nas duas houvesse
Folhas que os passos não enegreceram.
Oh, reservei a primeira para outro dia!
Mas sabia como caminhos sucedem a caminhos
E duvidava se alguma vez lá voltaria.

É com um suspiro que agora conto isto,
Tanto, tanto tempo já passado:
Duas estradas separavam-se num bosque e eu -
Eu segui pela menos viajada
E isso fez a diferença toda.



Tradução: José Alberto Oliveira





quinta-feira, 16 de janeiro de 2020

MIGUEL DE UNAMUNO - ANTÓNIO BOTTO



 MIGUEL DE UNAMUNO
(Bilbau, Espanha, 1864 – Salamanca, 1936)
Poeta, filósofo, dramaturgo

***

António Botto, do clarão da alma universal que sentimos em toda a sua obra, deu-nos toda essa profunda humanidade que há na vida e no amor, - em romances, contos, novelas, cartas, poemas, canções, e sonetos magistrais de originalidade, através do sentido puro de grande mestre que é da língua portuguesa.

Convidado, por mim, para ir a Salamanca, quando Reitor da Universidade, tive ocasião de o ouvir. Recitou para uma sala cheia de artistas, de escritores, e de senhoras e catedráticos. O triunfo daquela sua voz na dição extraordinária de sons musicais, entrecortados por silêncios em que o domínio da emoção fez prodígios de encantamento, eu – nada lhe pude dizer. 

Emocionado, abracei-o, comovidamente rendido a um verdadeiro Deus da Poesia.




MIGUEL DE UNAMUNO – Crónica do Jornal “La Nacion” de Buenos Aires.

ANTÓNIO BOTTO - (Concavada, Portugal, 1897 - Rio de Janeiro, Brasil, 1959), poeta, dramaturgo.