sexta-feira, 25 de dezembro de 2020

CARTA DE ISABERTA PARA O PRIMO EPIFÁSIO




CARTA DE ISABERTA PARA O PRIMO EPIFÁSIO  


Meu querido priminho Epifásio

Foi com grande alegria que recebi a tua cartinha que vem escrita, como de costume, com tanto brilho que até ilustra uma pessoa.

Aliás, tu sempre foste o intelectual da família. Cada um é para o que nasce e tu, aos 6 meses, te caiu aquele dicionário na cabecinha que ficaste assim. Foi o destino que te quis moldar a moleirinha para altos voos.

Já o mesmo não posso dizer do meu Bentinho que, embora tivesse muita vocação para as letras, coitadinho, nunca conseguiu acertar com a ortografia. Tu sempre foste muito mais dotado. Tinham vocês aí uns 10 anitos, ainda o meu Bentinho das vogais só sabia dizer o «Aaaaa» e já tu eras capaz de soletrar para cima de 46 letras do alfabeto.

E não é só na inteligência, tu também sempre foste um menino de muito bom coração. Lembras-te quando ficaste cheio de pena da tia Nafetalina nunca sair de casa e a quiseste levar a dar um passeio ao jardim na cadeirinha de rodas? Só foi pena não te teres lembrado dos 3 andares de escada. Coitadinha da tia Nafetalina. Ficou de tal maneira, que o médico no hospital até disse que uma cadeirinha de rodas já não bastava. Era preciso repartir a tia por duas cadeirinhas.

E da outra vez, quando quiseste ensinar a avozinha a nadar em estilo mariposa no lava-loiças? Tu sempre foste muito pedagógico. A avozinha é que não tem queda para a marinha. Tu bem quiseste começar por lhe dar endurância de pulmão. Ela gritou tanto, coitadinha. É falta de compreensão! Mas estava a progredir muito bem. Há mais de cincos minutos que tinha a cabeça debaixo de água!

E o prestável que tu eras! Sempre pronto a fazer um favor. Ás vezes até sem a gente pedir. Como naquele dia em que o Horácio estava a mudar uma lâmpada e, para ele ver melhor, tu foste ligar o quadro. O Horácio deu cá um salto! O que a gente se riu. Mas nervoso como ele é ficou para ali a tremer e com os olhos esbugalhados mais de meia hora. E como tem aquele mau feitio virou-se contra ti, pobrezinho. Pendurou-te pelas orelhas, com duas molas, da corda da roupa. Se calhar foi por isso que ficaste com as orelhitas assim. Mas não te deixes inferiorizar, não é por causa disso que as raparigas deixam de olhar para ti. E hás-de ter ficado com certeza a ouvir melhor.

Fico muito contente de saber que estás a frequentar a tropa porque aí é que um homem se faz homem. E tu, com a tua capacidade, estás  aqui estás general. Pelo menos.

Já agora gostava que me explicasses o que é aquela coisa da lei da defesa. Sim, porque o que eu acho que devíamos ter era uma lei do ataque para não termos que estar a depender de ninguém. Assim, não tínhamos que estar à espera que nos atacassem para nos defendermos. Íamos logo defender-nos para a terra dos outros, antes que eles venham defender-se para a nossa terra. Se calhar a lei chama-se de defesa para disfarçar. Para os outros não perceberem que nos estamos a preparar para os atacar.

Recebe muitos beijinhos, abraços e cumprimentos de toda a família e em especial desta tua prima que te estima e que se assina


ISABERTA




in “PÃOCOMANTEIGA” - Bernardo Brito e Cunha, Carlos Cruz, Eduarda Ferreira, José Duarte, Mário Zambujal, Orlando Neves.

Imagem: pintura da artista plástica brasileira, Camila Rahal     



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