quinta-feira, 24 de dezembro de 2020

CARTA DE EPIFÁSIO PARA A PRIMA ISABERTA




CARTA DE EPIFÁSIO PARA A PRIMA ISABERTA


Minha querida e osculada prima Isaberta

Tenho sabido novidades da prima e de todos os vossos por interposição da minha mana Ortôncia. Tomei também conhecimento de que estão todos de boa compleição, o que só me deixa aturdido de contentamento.

Infelizmente não vos tenho podido bafejar com a minha prosa em concomitância de que nos últimos anos os estudos me têm ocupado o tempo todo. Graças a Sta. Ingrácia terminei a 1ª classe com grande brilhantês de avaliações e nesta inerência fui chamado para fazer o serviço militar.

A minha mãezinha quer que eu faça o prosseguimento dos estudos para atingir um degrau de advogado ou pelo menos um emprego ao balcão na mercearia do sr. Ausêncio. Eu ambicionava muito de lhe dar essa alegria mas não sei se terei envolvência para tanto peso. A ver vamos, como dizia o cego.

No entretanto tenho frequentado a tropa com grande satisfação e beneficência. Ainda somente cá me capacito há três semanas e já pude auscultar a grande delicadeza que reina quer nos oficiais superiores, quer nos oficiais inferiores, quer no resto.

Ainda esta manhã preparava-me para compenetrar no gabinete do nosso capitão da companhia, rebati os calcanhares e disse: «Vossa insolência, meu capitão, dá-me permissividade para entrar?» E o capitão respondeu: «Insolente serás tu e mais toda a tua família!». Ora isto são finezas que não se enxergam nos oficiais de mais parte nenhuma, até porque além da tropa não há oficiais em mais parte nenhuma, se se fizer a retiragem dos oficiais de finanças que são uma excepcionalidade.

O que tem andado a ser alvo da minha cogitação é saber porque é que a cavalaria é uma arma. Empreendi na problemática e cheguei à concludência que deve ser difícil andar a atirar com os cavalos às faces do inimigo. Devia ser preciso ter umas fisgas muito grandes para fazer a arremeçagem dos esquadrúpedes, e em polivalência, ultrapassar a força da gravidade  que é uma coisa, não sei se a prima sabe, que todos nós temos mas os cavalos têm mais porque são mais pesados.

Mas a minha maior admirância e verbosidade vai para a arma de transmissões que é a arma mais pacífica de todas. Encarne a prima na conclusidade de que se só houvesse a arma de transmissões as guerras eram por telefone ou telegrama.

Estou com muitas saudades de todos mas espero aproveitar uma folga, ou mesmo antes, para vos transportar pessoalmente as minhas saudações e demonstrar-vos a minha farda que tenho trazido tão engraxada e desentupida que até pareço um bombeiro de Cagarelos em dia de festa.

Até que esse dia venha com a maior proximidade, receba os meus mais hipotéticos desejos de que tudo vos escorra pelo melhor deste vosso primo que muito vos obsequeia.


EPIFÁSIO

soldado raso




in “PÃO COM MANTEIGA” - Bernardo Brito e Cunha, Carlos Cruz, Eduarda Ferreira, José Duarte, Mário Zambujal, Orlando Neves.

Imagem: pintura de Emerson Fialho (Recife, Brasil, 1973)





Sem comentários:

Enviar um comentário