terça-feira, 30 de junho de 2020

OVELHAS NÃO SÃO P’RA MATO




OVELHAS NÃO SÃO P’RA MATO

Ovelhas não são p’ra mato,
Sabe-o bem o pastor;
Deixam a lã no carrasco,
A “perca” é do lavrador.

A “soidade” é uma flor,
Que se cria em qualquer vaso;
Lealdades no amor,
Só se encontram por acaso.

A azeitona quando nasce,
Nasce logo redondinha;
Tu também quando nasceste,
Foi logo para seres minha.

És meu amor, és meu tudo,
És da minha simpatia;
Tu és a brilhante estrela,
Para mim és luz do dia.

Não me namora o teu riso,
Nem a tua formosura;
Namora-me o teu juízo,
Que é o que um homem procura.



Cancioneiro Popular - Quadras recolhidas por José Leite de Vasconcelos, filólogo, etnógrafo (Portugal, 1858 – 1941).
Imagem: pintura de José Malhoa (Caldas da Rainha, Portugal, 1855 – Figueiró dos Vinhos, 1933).

segunda-feira, 29 de junho de 2020

ANTÓNIO LUIS MOITA - Pólen



ANTÓNIO LUIS MOITA
(Lisboa, Portugal, 1925 - 2013)
Poeta, escritor

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PÓLEN


E por um verso de oiro eu fui cem vezes morto.
E por amor de ti mil vezes me busquei.
Tinhas as mãos tranquilas como os dias de Inverno.
Humedeci os lábios na tua solidão.
Era tão simples tudo! E ah, quem no soubera,
desprevenida a face, exposta ao vário vento?
Agora sei que ascende ao longe a Primavera
e vou, bebendo o espaço, efémero e sereno.
Ao mar abandonei as infundadas ilhas.
Um rio acrescentei às mal cuidadas searas.
Agora frutifico as minhas mãos em claras
surpresas de granito!




domingo, 28 de junho de 2020

GUSTAVE LE BON – O Raciocínio das Multidões (I)



GUSTAVE LE BON
(França, 1841- 1931)
Antropólogo, psicólogo, sociólogo

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O RACIOCÍNIO DAS MULTIDÕES (I)


Não podemos dizer de uma forma absoluta que as multidões não são influenciáveis por raciocínios. Mas os argumentos que utilizam e os que agem sobre elas são, do ponto de vista lógico, de uma categoria de tal modo inferior que só por analogia podemos classificá-los como raciocínios.

Os raciocínios inferiores das multidões são, tal como os raciocínios elevados, baseados em associações: mas as ideias associadas pelas multidões só têm entre si elos aparentes de semelhança ou de sucessão.

Encandeiam-se à semelhança das de um esquimó que, sabendo por experiência que o gelo, corpo transparente, se derrete na boca, concluiu que o vidro, corpo também transparente, deve igualmente derreter-se na boca; ou das de um selvagem que imagina que adquire a bravura de um inimigo corajoso comendo-lhe o coração; ou ainda das de um operário explorado pelo patrão que conclui por isso que todos os patrões são exploradores.



(continua)


sábado, 27 de junho de 2020

KARL POPPER E EINSTEIN – Um encontro muito gratificante



KARL POPPER
(Viena, Áustria, 1902 - Londres, Reino Unido, 1994)
Filósofo

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Foi um dos grandes pensadores do século XX, cujo racionalismo crítico se opôs a todas as formas de relativismo, convencionalismo e cepticismo.

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POPPER E EINSTEIN
Um encontro muito gratificante


Popper contou que uma das experiências mais gratificantes da sua vida intelectual foi o seu encontro com Einstein. Sentiu-se muito honrado por personalidades do nível de Einstein e Bohr assistirem à sua conferência sobre «Indeterminismo na física quântica e na física clássica».

Os dois tiveram intervenções em que elogiavam a posição do conferencista. Conta Popper que discutiu longamente com Einstein sobre indeterminismo e assegura que tentou persuadi-lo a abandonar a sua concepção determinista, a respeito do que Einstein foi muito receptivo. Pensou também que concordava com ele sobre a necessidade de manter uma posição realista face ao idealismo de Gödel.

Pondo de lado o aspecto prolífico das suas discussões, deve salientar-se que Popper ficou deslumbrado com um homem que projectava uma atitude franca, bondosa, cheia de bom senso, sabedoria e uma quase infantil simplicidade.

Popper reconheceu sempre que a teoria da relatividade de Einstein tinha sido uma influência decisiva que estava conceptualmente na base de toda a sua filosofia da ciência.




in “Karl Popper – Vida, pensamento e obra”






quinta-feira, 25 de junho de 2020

SIDÓNIO MURALHA - Os olhos das crianças




SIDÓNIO MURALHA
(Lisboa, Portugal, 1920 - Curitiba, Brasil, 1982)
Poeta, escritor

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Poeta e ficcionista, fez parte do primeiro movimento neo-realista.
Em 1942 deixou Portugal a caminho do Zaire e, em 1962, fixou-se no Brasil onde desenvolveu a sua vocação de contador de histórias para crianças, paralelamente à sua actividade poética.


Fonte: “Instituto Camões”

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OS OLHOS DAS CRIANÇAS


Atrás dos muros altos com garrafas partidas
bem para trás das grades de silêncio imposto
as crianças de olhos de espanto e de medo transidas
as crianças vendidas alugadas perseguidas
olham os poetas com lágrimas no rosto.

Olham os poetas as crianças das vielas
mas não pedem cançonetas, mas não pedem baladas
o que elas pedem é que gritemos por elas
as crianças sem livros sem ternura sem janelas
as crianças dos versos que são como pedradas.




quarta-feira, 24 de junho de 2020

CRUZEIRO SEIXAS - Um barco sonha com outro barco



CRUZEIRO SEIXAS
(Amadora, Portugal, 1920)
Pintor, poeta

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UM BARCO SONHA COM OUTRO BARCO

Um barco sonha com outro barco
oferece-lhe orquídeas de som
um túmulo gótico limos todo o mistério
lá onde a abóbada assenta sobre a coluna vertebral
que guarda palavras algemadas
e os passos dos peregrinos a caminho da ausência.

Estamos a um dia do fim de qualquer coisa.
Pela mão que guardo em todos os peitos
pelo contínuo marulhar na solidão na minha fronte
por esta maresia que vinda do sonho
sobe e sufoca
pela noite que se exprime no mais profundo de cada dia
ofereço-te a eternidade
como um trapo velho dentro de mim.

Todos os comboios atravessam o meu corpo
todos os diamantes se suicidam à minha porta
todas as mãos têm movimentos copiados do mar.

Ao meu lado sobre mim dentro de mim
como ao fim das tardes no inferno
o segredo que a sete chaves guardamos
passam-no agora as árvores em voz baixa uma às outras.

Oh meu amor o fim não existe tudo é recomeço
e tudo recomeça pelo fim.
Não esqueças esses momentos de transgressão
mais vida do que a vida
como o cavalo que corre dentro de si próprio cego
até o infinito que não há.



 





terça-feira, 23 de junho de 2020

AMBROSE BIERCE – O Conselho Directivo do Reformatório



AMBROSE BIERCE
(Ohio, EUA, 1842 – 1913)
Escritor, crítico satírico

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O CONSELHO DIRECTIVO DO REFORMATÓRIO


Tendo suspeitado que os membros do Conselho Directivo do Reformatório de Doosnoswair nomeavam professoras por motivos menos próprios, a comunidade local decidiu eleger um Conselho Directivo composto unicamente por mulheres. O escândalo chegou ao fim em poucos anos: deixou de haver professoras no Reformatório.





in “Esopo emendado & outras fábulas fantásticas”





segunda-feira, 22 de junho de 2020

OS CONTOS DE CANTUÁRIA




OS CONTOS DE CANTUÁRIA


Obra maior de GEOFFREY CHAUCER, poeta inglês da Idade Média.

Escrito no final do século XIV em inglês médio, o poema, de 17000 versos, é composto por um conjunto de histórias contadas por um grupo de peregrinos, na jornada que os leva de Londres a Cantuária.

Os contos apresentam estilos de linguagem diferentes, que reflectem a diversidade de carácter e de profissões dos peregrinos.

Alguns dos contos são marcadamente obscenos, enquanto outros se caracterizam por uma religiosidade superficial.






in “Dicionário do Conhecimento Essencial”







domingo, 21 de junho de 2020

LIMA DE FREITAS – Pablo Picasso (IX)



LIMA DE FREITAS
(Setúbal, Portugal, 1927 — Lisboa, 1998)
Pintor, desenhador, escritor

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Lima de Freitas é considerado um “Artista Total”, com um importante percurso criativo e humanista na cultura portuguesa contemporânea: pintor, ilustrador, ensaísta e brilhante investigador. Foi membro fundador da CIRET em Paris, a partir de 1992 da Comissão Consultiva junto da UNESCO para a transciplinaridade.
É autor de ensaios e livros sobre temas de semiótica visual, estética e simbologia, bem como de inúmeros escritos sobre arte.

Fonte: “Centro Português de Serigrafia” (excerto)

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PABLO PICASSO (IX)
(continuação)

Ao génio agressivo e penetrante de Picasso faltou apenas a confiança na cultura e uma ideia profunda de metamorfose e de transcendência; a grande corrida de touros da sua arte acaba na «mise à mort» - sem que desse sacrifício nasça o vislumbre dos novos tempos, algo de novo e de luminoso. Picasso contribuiu como nenhum outro para a destruição de alguns falsos mitos; é uma ironia do destino que ele se tenha transformado num mito.

Cumpre-nos partir do seu legado, não já para imaginar o que seria um Picasso para lá de Picasso, mas inventar a nova construção, a pintura para lá da pintura. Para o alcançar é imprescindível um esforço de consciência, renovada ao nível dos temas, ao nível da visão do mundo. Já não bastam as violências exercidas sobre o corpo da pintura: isso o sabemos; em grande parte, graças a Picasso.

(Fim)



in ”Voz Visível” – Ensaios - 1971