quarta-feira, 28 de fevereiro de 2018

LUÍSA DACOSTA – Comboio (II)



LUÍSA DACOSTA
(Vila Real, Portugal, 1927 – Matosinhos, 2015)
Escritora

***

Comboio

II

Jogam-se as cartas com um baralho sebento e avinhado. Os parceiros enfrentam-se resolutos, confiantes na sorte, pesando mentalmente os cachos compactos que rodeiam o adversário. 

Noutro grupo, um homem (meu Deus, como são inesperados os pequenos funcionários!) conta aos companheiros de sempre o «Romeu e Julieta», que acabou de ver no cinema de bairro. Deleita-se na descrição do céu estrelado, do amanhecer, e é notável o seu realismo ao encarnar Julieta na cena final (pobre múmia de cachecol desbotado, esquecida que o sobretudo lhe começa a rarear nos cotovelos!).

A luz do tecto toma uma cor esverdeada de expectoração ao derramar-se pela fealdade do compartimento - amálgama de sujidade, cestos e cascas de tremoços. Atado à perna dum banco, viaja um cão, que de vez em quando geme. O seu gemido é acompanhado por um olhar (e nisto consiste a tragédia) humano, mais humano do que o dos homens empastados de vinho, amargura e vida difícil.

Lá for a noite. Por vezes luzes isoladas, em breve desaparecidas para sempre. A todas a locomotiva grita o seu adeus, que perfura a escuridão corno ronco impotente de pavão solitário.

Ao fundo do compartimento, o actor que se recusa a representar o seu papel. Trata-se dum adolescente loiro semelhante a um fruto dourado entre hortaliças podres. Não, ele não renunciará. Não será como esses. Vencerá a vida, ela cederá ao seu amplexo viril com êxtase virgem de mulher possuída pela primeira vez. Os seus olhos tornam-se duros, alheios, fixos. O lábio inferior recurva-se-lhe de decisão e sensualidade, como flor estranha, a um sol tropical.

Entretanto o compartimento esvaziou-se. Um a um os grupos foram ficando pelas estações (a maior parte eram empregados do caminho de ferro, que num hábito de todos os dias fazem a mesma viagem). 

Os poucos que ficaram cabeceiam e adormecem embrulhados em modorra e no frio da noite - que entra pelas bandeiras sem vidros das janelas. Dos lábios entreabertos do vagabundo (partirá para a Índia no próximo barco) solta-se um fio de saliva, que faz um regato e uma poçazinha brilhante na gola do seu casaco preto e ensebado.


28 de Fevereiro de 1951 (entre o Porto e Régua).


in “Árvore” – Folhas de Poesia –1953


terça-feira, 27 de fevereiro de 2018

MONUMENTOS PORTUGUESES NO MUNDO - Igreja de Nossa Senhora do Rosário – Cabo Verde





Igreja de Nossa Senhora do Rosário

A Igreja de Nossa Senhora do Rosário, hoje um património histórico, teria sido construída por volta de 1495. É um dos mais antigos templos da ilha de Santiago e de Cabo Verde.

Nessa Igreja pregou o Padre António Vieira, em 1652, de passagem para Brasil, vindo de Portugal. Na altura, o que mais surpreendeu ao grande orador português foi o facto de ter encontrado clérigos e cónegos dotados de uma sabedoria, que segundo ele próprio, faziam inveja aos melhores do Reino.


in “Cidade Velha” (excerto)


segunda-feira, 26 de fevereiro de 2018

FIAMA HASSE PAIS BRANDÃO - Fui criança, indo por um carreiro



FIAMA HASSE PAIS BRANDÃO
(Lisboa, Portugal, 1938-2007)
Poetisa, dramaturga, ensaísta, tradutora

***
Participou no movimento “Poesia 61” depois de se ter estreado com o livro de poemas Em cada Pedra Um Voo Imóvel, 1957. 
Em 1975 fundou o grupo Teatro-Hoje.


in”Portugal Século XX”

***

Fui criança, indo por um carreiro

Fui criança, indo por um carreiro,
a caminho do mar, mão na outra mão,
entre árvores, pedras, insectos e aves.
Toda a Natureza me coube nas pupilas,
mestra de sentimentos, e eu discípula.
E, se fechava os olhos, ela punia-me
com o silêncio cruel das ondas,
a mudez imerecida dos insectos,
e a distância das aves, que doía.
e os abria, tudo me rodeava,
apaziguado e meu,
mas a mão que me trazia a mão
puxava-me para a luz de cada dia.


domingo, 25 de fevereiro de 2018

CARTA DE VIRGÍNIA VICTORINO a JOÃO VILLARET



                                            
                    

         VIRGÍNIA VICTORINO
      (Alcobaça, Portugal, 1895 - 1967)
     Professora, poetisa e dramaturga

    ***
    JOÃO VILLARET
      (Lisboa, Portugal, 1913 - Lisboa, 1961)
     Actor, encenador, declamador

    ***

Carta de Virgínia Victorino a João Villaret

Cada recital de João Villaret assinala um novo triunfo na sua carreira gloriosa.
A poesia tem nele um paladino incansável, devendo-lhe, como magnífico intérprete, momentos de grande altura. Ouvi-lo uma vez significa, portanto, a impossibilidade de o esquecer… ou o desejo de renovar constantemente essa alegria espiritual.

Virgínia Victorino
Lisboa – 1948



in “João Villaret – Sua Vida … Sua Arte…”
Autor: Mário Baptista Pereira 

Imagem: Virgínia Victorino - fotografia de Eduardo Malta
                             

sábado, 24 de fevereiro de 2018

OLIVEIRA MARTINS – Historiador



OLIVEIRA MARTINS
(Lisboa, Portugal, 1845 - 1894)
Historiador

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Historiador, economista, antropólogo, crítico social e político, a sua acção e os seus trabalhos suscitaram controvérsia e tiveram considerável influência, não apenas em historiadores, críticos e literatos do seu tempo e do século XX, mas na própria vida política portuguesa contemporânea.

Desde 1867, Oliveira Martins experimentou diversos géneros de divulgação cultural: romance e drama históricos, ensaios de reflexão histórica e política e doutrinária. Mas essas tentativas, de valor desigual, não alcançaram grande sucesso. Em 1879, dá-se uma inflexão no seu percurso intelectual, com o início da publicação da Biblioteca das Ciências Sociais, de sua exclusiva autoria.

Pelo largo fôlego e diversidade de matérias que pretendia abarcar - história peninsular, história nacional e ultramarina, história de Roma, antropologia, mitos religiosos, demografia, temas de economia e finanças, etc. - a colecção constituiu um projecto sem precedentes no meio cultural português da Regeneração, com o objectivo de generalizar todo um conjunto de saberes entre um público alargado. 

O empreendimento editorial ficaria marcado pelo autodidatismo de Oliveira Martins, uma curiosidade científica sem limites e um bem evidente pendor interdisciplinar e globalizante. Esse autodidatismo é afinal indissociável do próprio percurso biográfico e profissional do historiador.



in “Instituto Camões” 

sexta-feira, 23 de fevereiro de 2018

ERNEST WIECHERT – ‘FLORESTA DOS MORTOS’ - O testemunho sobre o terror nazi



ERNEST WIECHERT
(Alemanha, 1887 – Suíça, 1950)
Escritor e professor

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Foi um dos escritores mais sensíveis, mais humanos e, sem dúvida, menos revolucionário da Alemanha. Conta, no seu livro Floresta dos Mortos, os horrores do campo de concentração antes da guerra. Preso em 1938, foi um dos milhares de alemães sobre que o nazismo «experimentou» os métodos que depois iria aplicar a milhões de homens de todas as raças e de todas as crenças.

***
O testemunho sobre o terror nazi

«Um povo inteiro tinha sido transformado, em alguns anos, num povo de lacaios: lacaios nas cátedras das universidades, lacaios nos tribunais, lacaios a ensinar nas escolas, a conduzir a charrua, no tombadilho dos navios, no exército, lacaios no gabinete de trabalho dos escritores. Lacaios em toda a parte onde havia uma palavra a pronunciar, um gesto a fazer, uma acusação a abafar, uma crença a proclamar.

Quando de madrugada ainda, na luz cinzenta do amanhecer, esses milhares de homens se juntavam para a chamada da manhã, curvados e tiritantes sob as bátegas de chuva, muitos deles apoiados em longas varas, outros, gravemente enfermos, que os seus companheiros amparavam, alguns levados em macas improvisadas, quando o vento fazia flutuar farrapos de nevoeiro em volta das colunas em marcha, ocultando-as agora, descobrindo-as depois na luz lívida, quando ao pé de uma árvore ou de um candeeiro jazia um moribundo, mostrando à luz do amanhecer um rosto já de além-túmulo, julgava-se assistir a uma cena da vida do inferno, saída da terra como um pesadelo, à visão de um inferno como jamais o pincel de nenhum pintor, o buril de nenhum gravador igualou, porque nenhuma imaginação humana, genial que fosse, poderia alcançar uma realidade que não teve igual há muitos séculos, nem talvez em tempo nenhum. 

Como compreender que eram as duas partes dum só e único povo, que falavam a mesma língua, que tinham adorado outrora o mesmo Deus, tinham recebido da mesma forma o baptismo e a confirmação; do mesmo povo a que Goethe pertencera, que passara pela guerra dos Trinta Anos e pela Grande Guerra, e cujas mães e avós tinham cantado, à noite: «Ergueu-se a lua…» De um povo que se achava agora dividido, não pela riqueza ou a pobreza, a piedade ou a impiedade, nem por duas línguas, duas religiões  ou duas naturezas diferentes, mas por um dogma político, por um vitelo de ouro de papel, oferecido ao culto e que, adorado ou desprezado, decidia da subida de cada um na escala das honras, ou o precipitava nos braços de Moloch para ser vilipendiado, torturado, imolado, riscado da existência e da memória. 

Nada do que existia anteriormente contava, nem a obra realizada, nem a bondade, nem o trabalho e o esforço de uma vida inteira. Contava apenas o presente, a fé jurada ao ídolo, o ajoelhar diante de César, a cega repetição de uma fórmula, o patético falso duma pseudo-cultura, a gritaria dos demagogos.

Não se funda uma civilização sobre o sangue dos homens. Sobre o sangue ou a violência podem fundar-se estados, mas os estados não passam de castelos de cartas ao grande vento da eternidade. O que permanece é fundado por outros. Não por carcereiros nem carrascos. Nem sequer por generais. E esses que fundam alguma coisa não derramam o sangue, excepto o seu próprio, com que alimentam a sua obra imortal. O espírito não morrera ainda neste mundo, nem o amor, nem a beleza. Existiam ainda, mesmo desprezados, mesmo vencidos. E um dia voltariam a erguer o seu pendão ofuscante acima dos ossários das nações.»



in “Mundo Literário” - 1946



quinta-feira, 22 de fevereiro de 2018

SOARES DE PASSOS – O noivado do sepulcro



SOARES DE PASSOS
(Porto, Portugal, 1826 - 1860)
Poeta

É um dos expoentes da poesia ultra-romântica portuguesa.


                                            ***
O noivado do sepulcro

Vai alta a lua! na mansão da morte
Já meia-noite com vagar soou;
Que paz tranquila; dos vaivéns da sorte
Só tem descanso quem ali baixou.

Que paz tranquila!... mas eis longe, ao longe
Funérea campa com fragor rangeu;
Branco fantasma semelhante a um monge,
D'entre os sepulcros a cabeça ergueu.

Ergueu-se, ergueu-se!... na amplidão celeste
Campeia a lua com sinistra luz;
O vento geme no feral cipreste,
O mocho pia na marmórea cruz.

Ergueu-se, ergueu-se!... com sombrio espanto
Olhou em roda... não achou ninguém...
Por entre as campas, arrastando o manto,
Com lentos passos caminhou além.

Chegando perto duma cruz alçada,
Que entre ciprestes alvejava ao fim,
Parou, sentou-se e com a voz magoada
Os ecos tristes acordou assim:

"Mulher formosa, que adorei na vida,
"E que na tumba não cessei d'amar,
"Por que atraiçoas, desleal, mentida,
"O amor eterno que te ouvi jurar?
"Amor! engano que na campa finda,
"Que a morte despe da ilusão falaz:
"Quem d'entre os vivos se lembrara ainda
"Do pobre morto que na terra jaz?

"Abandonado neste chão repousa
"Há já três dias, e não vens aqui...
"Ai, quão pesada me tem sido a lousa
"Sobre este peito que bateu por ti!

"Ai, quão pesada me tem sido!" e em meio,
A fronte exausta lhe pendeu na mão,
E entre soluços arrancou do seio
Fundo suspiro de cruel paixão.

"Talvez que rindo dos protestos nossos,
"Gozes com outro d'infernal prazer;
"E o olvido cobrirá meus ossos
"Na fria terra sem vingança ter!

– "Oh nunca, nunca!" de saudade infinda
Responde um eco suspirando além...
– "Oh nunca, nunca!" repetiu ainda
Formosa virgem que em seus braços tem.
Cobrem-lhe as formas divinas, airosas,
Longas roupagens de nevada cor;
Singela c'roa de virgínias rosas
Lhe cerca a fronte dum mortal palor.

"Não, não perdeste meu amor jurado:
"Vês este peito? reina a morte aqui...
"É já sem forças, ai de mim, gelado,
"Mas inda pulsa com amor por ti.

"Feliz que pude acompanhar-te ao fundo
"Da sepultura, sucumbindo à dor:
"Deixei a vida... que importava o mundo,
"O mundo em trevas sem a luz do amor?
"Saudosa ao longe vês no céu a lua?
– "Oh vejo sim... recordação fatal!
– "Foi à luz dela que jurei ser tua
"Durante a vida, e na mansão final.

"Oh vem! se nunca te cingi ao peito,
"Hoje o sepulcro nos reúne enfim...
"Quero o repouso de teu frio leito,
"Quero-te unido para sempre a mim!"

E ao som dos pios do cantor funéreo,
E à luz da lua de sinistro alvor,
Junto ao cruzeiro, sepulcral mistério
Foi celebrada, d'infeliz amor.

Quando risonho despontava o dia,
Já desse drama nada havia então,
Mais que uma tumba funeral vazia,
Quebrada a lousa por ignota mão.

Porém mais tarde, quando foi volvido
Das sepulturas o gelado pó,
Dois esqueletos, um ao outro unido,
Foram achados num sepulcro só.




quarta-feira, 21 de fevereiro de 2018

LUÍSA DACOSTA – Comboio (I)



LUÍSA DACOSTA
(Vila Real, Portugal, 1927 – Matosinhos, 2015)
Escritora

***

Comboio

I

O compartimento não está cheio. No banco do fundo, junto da porta que dá para o corredor, o homem que sabe tudo (explica como os nitratos e o húmus são as bases do crescimento das plantas), e que tem amigos em toda a parte. À janela dois namorados.

O rio aperta os montes nas suas anilhas amarelas de animal putrefacto. As vezes a primavera faz um aceno- uma árvore em flor (macieira?, pereira?). «Na minha terra» «quando era pequeno», dizem um ao outro os namorados - como se não estivessem a dizer banalidades, mas a soltar pombas em pleno azul. O homem que sabe tudo desenrola-se em frases lapidares de fonógrafo, perfeitamente seguro de deslumbrar o amigo ocasional (tinha escrito um artigo de fundo num jornal diário - sobre fosfatos?, sobre nitratos?). 

Para além da janela uma mata sombria (a história da Bela Adormecida surge inevitavelmente). Seguem-se as tangerineiras- as árvores da nossa infância - com as maçãzinhas de ouro (o sonho) espreitando das folhas verdes da realidade. «Aquela casa deve ter uma linda vista», dizia o namorado projectando a sua alma sedenta de beleza (quem sabe se até de amor?) na paisagem. 

Eis a chuva. Absolutamente necessária para impedir que as coisas se partam, ou fiquem demasiado tensas. Grossa, sonora, aguando o quadro que o caixilho da janela emoldura. Um barco, encalhado na margem com o mastro hirto deserto de vela, balança-se numa indolência morta. E agora o túnel, como uma mão negra, impaciente, apagando a visão que é impossível reter.

Entrou um casal. A burguesia ressalta das penas pretas solenes e luzidias do chapéu da esposa. Lá fora tudo mudou. As coisas ganham um ar ajardinado. Os montes perdem altura - arredondam-se como seios. Por toda a parte caminhos, que levam a minúsculas casas de bonecas. Uma paisagem boa para bordar a ponto de cruz. Uma casa. Uma árvore. Um caminho.


19 de Fevereiro  de 1951 (entre Régua e Vila Meã)


in “Árvore” – Folhas de Poesia –1953




terça-feira, 20 de fevereiro de 2018

ALICE PESTANA - Escritora e Humanista


ALICE PESTANA
(Santarém, Portugal, 1860 — Madrid, Espanha, 1929)
Humanista, pedagoga

***

De grande cultura, abrangendo vários idiomas, as letras, as ciências e a música, escreveu em inglês, francês, espanhol e português. O seu primeiro artigo em língua inglesa foi publicado na revista The Financial and Mercantile Gazette e consistia numa crítica à tradução do Hamlet feita por D. Luís I.

Em 1888 viajou pela Suíça, França e Inglaterra em missão do Governo para recolha de elementos que conduzissem ao aperfeiçoamento do ensino secundário feminino. O seu relatório, considerado notável, foi publicado no Diário do Governo.

Foi responsável pela fundação da Liga Portuguesa da Paz (considerada a primeira organização feminista em Portugal) em 1899 e sua primeira presidente. Em representação da Liga esteve presente na Conferência da Paz de Haia, no ano seguinte. Pertencia também à Sociedade Altruísta desde 1896.

Em 1930 publicou-se em Madrid o seu In Memoriam, que abre com dois textos, sobre Caïel, de Teófilo Braga e Bernardino Machado.




in “DGLAB”

segunda-feira, 19 de fevereiro de 2018

ALVES REDOL – Viajar



ALVES REDOL
(Vila Franca de Xira, Portugal, 1911 – Lisboa, 1969)
Escritor

***
Editado pelo autor, Glória, uma Aldeia do Ribatejo, é um estudo etnográfico onde se patenteiam as aptidões ficcionistas de Alves Redol. Neste estudo se revela o método que marcará toda a sua obra literária: a vivência e o reconhecimento profundo dos problemas, só atingido com o contacto estreito com os locais e grupos sociais sobre que se debruça.

Gaibéus surge em 1939. Esta obra, o primeiro romance neo-realista escrito em Portugal, é dedicada “à memória de Venâncio Alves e João Redol, ao ferreiro e ao campino”, seus avós. Com este romance inicia Alves Redol o ciclo de ficção temática ribatejana de camponeses e pescadores da borda-d’água.

Escritor empenhado na luta pela melhoria independente das classes trabalhadoras, é preso em 12 de Maio de 1944, debaixo de uma última ameaça, que chega a concretizar-se: nem um lápis nem um papel para escrever, como se quisessem tratá-lo como um novo Robinson Crusoé no centro de uma sociedade fascizante: exprimir-se, ele, Alves Redol, traçando os seus pensamentos com as unhas nas paredes das celas.

Maria Emília é a sua primeira obra de teatro. Segue-se Forja em 1948.

É continuamente vigiado pela PIDE, nomeadamente na volta das suas deslocações ao estrangeiro, por ser um escritor de grande impacto popular e muito admirado pelos trabalhadores das fábricas e dos campos.

Escritor de importância internacional, traduzido, convive com artistas e escritores em França, na Polónia, em Espanha. É impedido de participar num Congresso de Escritores na América Latina.

Em 1961 publica o que é considerado pela crítica o seu melhor romance: Barranco de Cegos.

Alves Redol pode servir de exemplo na procurada e singular condição humana de autodidatismo conseguido pela experiência, pela observação, pelo estudo, pela cultura, pela actividade sócio-política – que sempre procura transmitir aos outros e depois vaza nos seus livros, dos mais admiráveis na nossa literatura.


in "Hemeroteca de Lisboa" (excertos)

***

Viajar

Viajar é correr mundo,
voar mais alto que os pássaros
ou pisar o chão da Terra
ou as ondas do  Mar Alto...
É ver bichos
de muitas cores e feitios,
montanhas,
rios,
e ribeiros
e pessoas
e lugares...
Conhecer e descobrir,
inventar e duvidar,
sabendo cada vez mais,
sem nunca pensar que basta
o mundo que se conhece.
E alargá-lo com amor
dentro de nós e dos outros.



domingo, 18 de fevereiro de 2018

JORGE SILVA MELO – Aos esquecidos da literatura


JORGE SILVA MELO
(Lisboa, 7 de Agosto de 1948)
Dramaturgo, encenador, tradutor, realizador de cinema

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Aos esquecidos da literatura

Sei que há tratados, colóquios, viagens que não fiz. Mas eu, que primeiro li Joyce no francês de Larbaud, comecei Brecht pela Ilse Losa, me embrenhei em Tretiakov em italiano, descobri Melville pela mão segura do Alfredo Margarido (e de Pavese…), Kleist por Gracq, e ainda agora tanto devo a Alessandra Serra traduzindo Pinter para a Einaudi, acho que não há gratidão, não há carinho para com os tradutores, gente que de perto fui conhecendo quando não havia word count e se batia à máquina contando as linhas que ditavam o salário. (As longas tardes na Mata da Caparica, com a Luiza, o Manuel João e o Diniz brincando, e nós a contar sílabas e cesuras de alexandrinos, Roussel ou Sade.)
E há um lugar na Literatura para estas angustiantes escolhas, estas transversais indecisões, estas insuficiências, bloqueios, estas súbitas revelações. E aquilo que sinto, qualquer que seja a língua para que se verte, é que os escolhos da tradução, a sua rudeza, a sua via aproximativa, são muitas vezes – tantas vezes – clarificadores. A quem me diz “não leio traduções “ só me apetece responder: “só leio traduções”. Como eu gostava de, em volume da Penguin, ler Garrett, como já li Puschkin.
Quando é poesia, já se reconhece ao tradutor – Ungaretti ou Sena, Cernuda ou Celan – um lugar no alto império das letras. Mas eu gosto é de Leyguarda Ferreira que tanto Scott traduziu, gosto de Aurora Rodrigues a quem devo Hawthorne, Aida Almeida Pêra, António Ruas, António Neves Pedro (admirável Stephen Crane, na Ulisseia, em 1960). E Mário Domingues, com quem li um inventivo Tom Jones “adaptado” de Fielding. Nomes que desaparecerão quando se esboroar a traça das editoras para quem trabalhavam depois das aulas, ao fechar a porta de casa aos explicandos, depois do jantar, na saleta com braseira, noite fora.
Não é só por permitir o acesso a outros mundos que o trabalho do tradutor me encanta, me desilude ou surpreende. É pelas muitas escolhas com que o original se refaz na gaze das línguas, é pelo desenho que se entrevê, pelo risco carimbado. Como se a língua original fosse a marca de água do texto.
E daqui ergo a taça a esta literatura subterrânea, incerta, aproximativa, literatura nascida dos outros livros. E deste meu canto vos saúdo e agradeço, tradutores (e atenção: mesmo aos maus me dirijo, aos péssimos, pois também deles é feito o Reino dos Livros). 
19 de Outubro de 2002  
                                                    
in “Século Passado”


sábado, 17 de fevereiro de 2018

CARLOS MALHEIRO DIAS – A Força e a Moral



CARLOS MALHEIRO DIAS
(Porto, Portugal, 1875 - Lisboa, 1941)
Romancista, contista e historiador

***

A força e a Moral


O homem constata o facto natural de um lobo poder devorar uma ovelha, pois que o lobo obedece ao seu apetite e é dotado da força necessária para satisfazê-lo. Mas o homem não se limita a essa constatação elementar, ao alcance de qualquer animal inferior. Ele reconhece também que está no seu poder impedir que a ovelha seja devorada pelo lobo.

A moral é, justamente, a soma de conquistas obtidas pelo homem sobre a tirania dos seus instintos. Se a força constituísse para o homem um imperativo categórico, não haveria tentativas de resistência contra a força.



in “O Espiritualismo e a Guerra Mundial”


sexta-feira, 16 de fevereiro de 2018

ARTHUR RIMBAUD - Adeus




ARTHUR RIMBAUD
(França, 1854 — 1891)
Poeta

***
Adeus

Sim, ao menos a hora nova é severíssima.

Posso dizer que tenho a vitória adquirida: o ranger de dentes, os silvos de fogo, os suspiros pestilentos abrandaram. Todas as memórias imundas se apagam. Vispam-se os meus últimos remorsos, - ciúmes dos mendigos, dos salteadores, dos amigos da morte, dos ignaros de toda a sorte. - Malditos, se eu me vingasse!

Temos de ser modernos absolutos.

Cânticos nunca: manter o passo adquirido. Dura noite! O sangue seco fumeia no meu rosto, e nada atrás de mim, só a arvorezinha horrível!... O combate do espírito é tão brutal como batalha de homens; mas a visão da justiça é prazer só de Deus.

Vigília, no entanto. Recebamos todos os influxos de vigor e de ternura autêntica. E pela aurora, armados com ardente paciência, entraremos na cidade esplêndida.

Falava eu de mão amiga! Um bom proveito, é poder rir-me das velhas afeições enganosas, e ferrar de vergonha esses casais de engano, - eu vi aquele inferno das mulheres; - e ser-me-á dado possuir a verdade dentro de uma alma e num corpo.



Tradução: Filipe Jarro
Imagem: Arthur Rimbaud – fotografia de Étienne Carjat (1871)

quinta-feira, 15 de fevereiro de 2018

ÂNGELO DE LIMA – A meu pai



ÂNGELO DE LIMA
(Porto, Portugal, 1872 - Lisboa, 1921)
Poeta e pintor

Foi colaborador da revista "Orfheu". São notáveis alguns dos seus sonetos. Na sua obra há sinais precursores da escrita automática dos surrealistas.

***
A meu pai

(No Santo Dia Dos Finados)

Pai! quando às horas do findar do dia,
A bruma vaga cobre, triste, o Espaço
E a mim me envolve na melancolia…

Pai! Diz-me: sabes que secreto laço
Me prende, a mim, que vago n’este mundo,
Triste, avergado sob o atroz cansaço,
A ti, que pairas lá no céu profundo? …

Pai! sou teu filho! – sou teu filho, sinto…
Não me renegues – sou teu filho, oh! Pai!…
Vês como eu vago n’este labirinto,
Perdido, triste, alucinado, – aí! –
Tal como a nave em que Israel vagou,
E, erma, ao acaso, sobre as águas vai,
Sem já saber que força me guiou,
Sem que me guie já vontade alguma,
N’esta derrota que seguindo vou?

Pois, como à nave que não tem nenhuma,
Nenhuma sombra de tripulação,
Sorri ainda Vésper, de entre a bruma…
Tal ao meu enlutado coração,
Que já não guia nem um só anseio,
Sorri, ao longe, de entre a cerração,
Oh! Pai! O afecto do teu nobre seio!

Pai! meu sincero, meu finado amigo!…
Dormes, no Nada majestoso e triste,
Ou vives ‘inda, como a Dor existe?…

Pai! quem me dera, logo, ir ter contigo!…

Pai! A Desgraça se enlaçou comigo,
Desde que, um dia, oh Pai! tu me fugiste!…
Pai!, se, n’um voo, pelo céu, partiste,
Diz-me o rumo, quero ver se o sigo…

Pai! Tua pobre campa, tão singela,
Talvez não tenha, como as outras têm,
No dia de hoje, quem n’a enflore a ela…

Ai! que é tão triste não se ter ninguém!

Ao menos, Eva, o nosso encanto, – vê-la? –
E Pedro, e Vasco… São contigo além!



Imagem: retrato de Ângelo de Lima. Autor: “doente Pragana”, 1919, tinta negra s/ papel.