sábado, 31 de agosto de 2019

SEGUNDA GUERRA MUNDIAL - VLADIMIR NAZOR – Mãe Ortodoxa



VLADIMIR NAZOR
(Croácia, 1876 – 1949)
Poeta, escritor, tradutor

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Nazor foi figura relevante do Modernismo jugoslavo. Mesmo com 67 anos durante a Segunda Guerra, o escritor engajou-se na resistência contra a ocupação nazista e o estado-títere da Croácia Independente. Em 1944 publicou o livro Canções dos Partizani.

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MÃE ORTODOXA

Com as mãos e os olhos escavas esta terra
Em busca do berço, do ícone de São Jorge,
Choras junto à cova coberta de fuligem,
Queres o bordado que a fumaça soterra - lar enlutado –
Tu, galho quebrado, pobre entre as mulheres,
mãe ortodoxa.

Com os pés cansados, hirtos, que não se aguentam,
Saíste à procura de tua vaca leiteira,
Nutriz das crianças e velhos. Mas sem eira
Nem beira lobos ou selva negra retinta - pés doloridos - Escondem. Não sofre, ninguém quer queijo ou leite,
mãe ortodoxa.
Choraste o destino de teu fiel companheiro,
Surrado como um cão, alvejado nas costas,
Torturado ou então atirado em masmorras.

Coração ardente, firme, duro e altaneiro - viajor amigo - Voltou mutilado, morreu em teu regaço, mãe ortodoxa.
Junto às cinzas de tua casa jazem os filhos,
Garganta cortada, chamam pela mãe, choram
Junto de seus avós e na vala estertoram
Com medo da cova húmida. E teus lábios - cova maldita –
O silêncio cerra com trevas e humidade, mãe ortodoxa.

Não afoga tua dor, infeliz, retesada,
Sombria. Deixa que tua mágoa pelo mundo
Durante séculos ecoe, antiga, funda.
Que ouçam tuas lembranças. Silenciosa, pálida, - que dor profunda -
Agora coberta de auréola de martírio, mãe ortodoxa.

(Numa aldeia sérvia incendiada junto a Vrginmost, Janeiro de 1943)




Tradução: Aleksandar Jovanocic
in “Segunda Guerra Mundial - Uma Antologia Poética – Sammis Reachers



sexta-feira, 30 de agosto de 2019

CARLOS CONDE – Flores de Lisboa




CARLOS CONDE
(Murtosa, Aveiro, Portugal, 1901 – Lisboa, 1981)
Poeta

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De Carlos Conde diríamos que foi um aguarelista em verso. Neles pintou os bairros mais típicos da cidade de Lisboa – não só na sua época, mas também na dos alvores do Fado – e a alma dos seus habitantes. 

Dominou como poucos as letras descritivas, com um poder de evocação quase cinematográfico, carregando de cor os cenários e trazendo à vida nomes de antigos fadistas, boleeiros, campinos, faias, ou outros poetas seus contemporâneos que assim homenageou.

Tinha a noção de que o Fado era eminentemente popular e, como tal, a sua linguagem tinha de ser simples, coloquial, entendida pela gente humilde e pouco letrada, mas nem por isso destituída de sensibilidade, a qual sabia tocar como poucos.


in “Poetas Populares do Fado Tradicional” – Daniel Gouveia e Francisco Mendes.

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FLORES DE LISBOA


Sempre a rir, sempre a cantar
Esta Lisboa bonita
Beija quem a sabe amar
E abraça quem a visita

Lisboa não se afadiga
De cantar a vida inteira
Tem p´ra tudo uma cantiga
A cidade cantadeira

A quem visita
Esta Lisboa
Terra que o mundo prende em fortes laços
Os nossos beijos
Com os desejos
A que voltem de novo a nossos braços
O meu país
P´ra ver feliz
Quem nos rende amizade fraternal
Concede flores
De vivas cores
Colhidas nos jardins de Portugal!
   
Lisboa deita-se tarde
E tão bem o fado entoa
Que nunca falte quem guarde
Uma nesga de Lisboa!

Canta e sente um bem profundo
Pois é feliz e contente
A cantar p´ra todo o mundo
E a sorrir para toda a gente.






quinta-feira, 29 de agosto de 2019

ISABEL WOLMAR – A Televisão (II)




ISABEL WOLMAR
(Lisboa, Portugal, 21 de Março, 1933 – 21 de Julho, 2019)
Locutora, apresentadora, produtora, repórter, actriz, poetisa, declamadora

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A TELEVISÃO (II)

Em 1974, os ventos do 25 de Abril atiraram-me para a prateleira. 

Aconteceram coisas muito feias quer na televisão quer na rádio. O que mais me chocou foi a atitude de certos colegas. Como é que as pessoas mudam de um dia para o outro? Nunca mais me esqueço de ver um colega nosso, com um revólver apontado à garganta de outro, a dizer: «se dás mais um passo, mato-te.» Com esta e outras atitudes, fui percebendo que a maior parte das pessoas não sabe viver em liberdade.

*

Em 1976, faço o meu regresso. 

Nessa altura, o Carlos Cruz era director de programas e convidou-me para fazer o Telecinema. Produzi, realizei e apresentei o programa. 

Viajei muito, conheci grandes nomes, como Burt Lencaster, Steven Spielberg, Peter Ustinov, David Niven, Gerard Depardieu, Isabelle Hupert, entre outros. 

O trabalho mais gratificante na TV foi o Telecinema, sem dúvida.

*

No início dos anos 80, a Maria Elisa como directora de programas, coloca-me como adjunta da parte internacional dos programas recreativos (filmes, documentários, desenhos animados). Aí, tinha 28 homens à minha conta. No início, eles não gostavam de mim, mas depois foram fantásticos. Éramos uma equipa muito coesa e muito amiga.

Na parte musical da produção, recebi três prémios pelo TOP2, na RTP2, um programa dedicado ao Rock, e em Encontro Com descobri talentos únicos, como o guitarrista clássico Silvestre Fonseca, hoje um grande artista, reconhecido mundialmente. Tive também um programa de jazz, com o saudoso Luís Villas-Boas, uma pessoa encantadora.

*

Quando me reformei, decidi dedicar-me um bocado a mim mesma. 

Fui para uma Universidade da Terceira Idade e fiz dois anos de Antropologia, que interrompi quando comecei a fazer dobragens. Nessa altura, surgiu-me um convite para regressar à televisão. Ainda que reticente, aceitei…

O programa chamava-se A minha vida dava um filme, onde as pessoas iam contar histórias da sua vida. Tinha um médico, um advogado e um psicólogo, que davam credibilidade ao programa.

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Quando a série de programas acabou, voltei a dedicar-me a mim e a outros projectos.






in “A Vida com um Sorriso” – Patrícia Costa Dias (excertos)







ANTÓNIO OSÓRIO - Soneto da Ausência




                                ANTÓNIO OSÓRIO
(Setúbal, Portugal, 1933)
Escritor, poeta
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SONETO DA AUSÊNCIA

O que a memória havia sepultado
em sábia rejeição, nos seus arcanos
a ausência faz voltar, ressuscitados
a morta dor, o morto amor, os mortos anos.

As já esquecidas mágoas emergem
deste oceano de lágrimas revoltas
a sargaços se agarram, quase soltas
ao sal amargo dos infrenes ventos.

Em luta uns com os outros os sentidos
Sangue e memória em guerra com o silêncio.
E surge a tentação nesta golfada

de pranto que sufoca as coronárias:
melhor quem sabe o sofrimento antigo
do que este negror de tua ausência.







quarta-feira, 28 de agosto de 2019

MANUEL DA FONSECA – Dona Abastança




MANUEL DA FONSECA
(Santiago do Cacém, Portugal, 1911 - Lisboa, 1993)
Escritor, poeta

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DONA ABASTANÇA

«A caridade é amor»
Proclama dona Abastança
Esposa do comendador
Senhor da alta finança.

Família necessitada
A boa senhora acode
Pouco a uns a outros nada
«Dar a todos não se pode.»

Já se deixa ver
Que não pode ser
Quem
O que tem
Dá a pedir vem.

O bem da bolsa lhes sai
E sai caro fazer o bem
Ela dá ele subtrai
Fazem como lhes convém
Ela aos pobres dá uns cobres
Ele incansável lá vai
Com o que tira a quem não tem
Fazendo mais e mais pobres.

Já se deixa ver
Que não pode ser
Dar
Sem ter
E ter sem tirar.

Todo o que milhões furtou
Sempre ao bem-fazer foi dado
Pouco custa a quem roubou
Dar pouco a quem foi roubado.

Oh engano sempre novo
De tão estranha caridade
Feita com dinheiro do povo
Ao povo desta cidade.