quinta-feira, 31 de outubro de 2019

SEGUNDA GUERRA MUNDIAL - MIKLÓS RADNÓTI – Céu Espumante



                               MIKLÓS RADNÓTI
(Hungria, 1909 – 1944)
Poeta, tradutor

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Durante a guerra passou por diversas dificuldades, vindo a ser preso e enviado ao campo de concentração de Bor. Durante uma das chamadas Marchas da Morte, onde prisioneiros eram obrigados a deslocarem-se a pé por centenas e até milhares de quilómetros, Radnóti, já debilitado, foi por fim executado e sepultado em vala comum. Após a exumação de seu cadáver, em 1946, foi encontrado no bolso de seu casaco um caderno com os seus últimos poemas, publicados sob o título de Tajtékos ég (Céu Espumante).


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CÉU ESPUMANTE


No céu que espuma, a lua oscila.
Estar vivo me causa espécie.
A morte assídua espreita a Idade:
quem ela encontre, empalidece.
O ano grita e depois desmaia.
(Gritara olhando ao seu redor.)
Que Outono ronda-me de novo?
Que Inverno embotado de dor?
Sangrava o bosque; mesmo as horas
sangravam no vaivém dos dias.
Ventos riscavam, sobre a neve,
cifras enormes e sombrias.
Já vi de tudo; o ar me esmaga
com seu peso; um silêncio cresce
ruidoso, cálido e me abraça
como fez antes que eu nascesse.
Detenho-me junto de um tronco
que agita iroso as frondes plenas
e estende um galho. Há-de esganar-me?
Não é fraqueza ou medo – apenas
cansaço. Calo. E o galho apalpa
os meus cabelos, mudo, aflito.
Cabe esquecer – mas não há nada
de que já tenha me esquecido.
Espuma afoga a lua; o miasma
estria os céus, verde e agressivo.
Sem pressa, enrolo com cuidado
o meu cigarro. Eu estou vivo.




Tradução:Nelson Ascher
in “Segunda Guerra Mundial - Uma Antologia Poética – Sammis Reachers




quarta-feira, 30 de outubro de 2019

PEDRO OOM - História do meu boneco



PEDRO OOM
(Santarém, Portugal, 1926 – Lisboa, 1974)
Poeta, escritor

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HISTÓRIA DO MEU BONECO

Cresceu comigo
neste espaço que se diz português
e neste tempo (histórico)
Maricas (era de esperar)
mas rebelde como um felino
ninguém se lhe pôs inteiro
ficou sempre um bocadinho
porque rangia a dentadura.
Depois de 45
afundou-se na continuidade
farfalhou o bigode, à guarda nacional antigo
e esperto como um corisco
instalou-se então, decidido
à mesa do orçamento.

 






terça-feira, 29 de outubro de 2019

RUTH FAINLIGHT - As Portas



RUTH FAINLIGHT
(Nova Iorque, EUA, 1931)
Poetisa, tradutora

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AS PORTAS

Há o trabalho de dar à luz.
Já o conheci — às vezes
lembro até o esforço de nascer.
Para vir está ainda
o trabalho de deixar a vida. Vi como é difícil
para alguns, enquanto outros,
que estavam presentes num momento
a seguir desapareceram. Passei
a porta da carne. Agora, a espera — quanto ainda? —
para aprender a última tarefa
antes de atravessar a porta da terra.




Tradução: Ana Hatherly

segunda-feira, 28 de outubro de 2019

NICANOR PARRA - O Túnel



NICANOR PARRA
(Chile, 1914 - 2018)
Poeta, matemático

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O TÚNEL

Passei uma época da minha juventude em casa de umas tias
arrastou-me para isso a morte de um senhor que nunca deixou de lhes estar ligado
e cujo fantasma as molestava sem piedade
tornando-lhes a vida irrespirável.
Ao princípio mantive-me surdo aos seus telegramas
e cartas lavradas numa linguagem de outra época
prenhes de alusões mitológicas
e de nomes próprios desconhecidos para mim,
muitos dos quais pertenciam a sábios da antiguidade,
a filósofos medievais de menor coturno
ou a simples vizinhos do lugarejo em que habitavam.
Abandonar assim às boas de supetão a faculdade
rompendo com os encantos da vida galante
só para satisfazer os caprichos de três anciãs histéricas
afigurava-se-me um estorvo irreparável.
E aturar-lhes toda a infinita classe de problemas pessoais
resultava, para uma pessoa do meu carácter,
um futuro pouco lisonjeiro, uma ideia descabelada.
Mas a verdade é que abobarei quatro anos n’ O Túnel,
em comunidade com aquelas damas medonhas
quatro anos de um martírio inalterável
dos confins da manhã à noite extrema. Breve
as poucas horas de ripanço debaixo das árvores
converteram-se em semanas de fastio
em meses de angústia que dissimulava ao máximo
sob pena de despertar curiosidade em torno da minha pessoa,
e assim se passaram anos de ruína e miséria,
séculos de encarceramento vividos por uma alma
inadvertida no bojo de uma garrafa de mesa!
A minha concepção espiritualista do mundo
colocava-me ante os factos num plano de franca inferioridade:
porque eu via tudo através de um prisma
ao fundo do qual as imagens de minhas tias se entrelaçavam
com filamentos vivos, numa espécie de malha impenetrável,
que feria a minha vista, tornando-a cada vez mais ineficaz.
Um jovem de escassos recursos não se dá conta das coisas.
Às tantas vive numa campânula de vidro que se chama Arte
que se chama Luxúria, ou que evoca as leis da Ciência,
tratando de estabelecer contacto com um mundo de relações
que só existem para ele e para um reduzido grupo de amigos.
Debaixo dos efeitos de uma espécie de vapor de água
que se filtrava pelo piso da habitação
permeando a atmosfera até tudo se tornar invisível
eu passava as noites diante da minha mesa de trabalho
absorvido na prática da escrita automática.
Mas para quê aprofundar estas matérias desagradáveis -
aquelas matronas vigarizavam-me miseravelmente
com as suas falsas promessas e as suas bizarras fantasias
e as suas dores sabiamente simuladas
retiveram-me anos entre as suas redes
obrigando-me tacitamente a trabalhar para elas
em fainas de agricultura
compra e venda de animais -
até que uma noite, olhando pela fechadura,
surpreendi uma delas
- a tia paralítica! -
a caminhar lestamente sobre a ponta dos seus pés
e voltei à realidade com um sentimento dos demónios.




Tradução: António Cabrita
 



domingo, 27 de outubro de 2019

ARMANDO CORTEZ – Carta ao Presidente da Caixa de Previdência dos Profissionais de Espectáculos




ARMANDO CORTEZ
(Lisboa, Portugal, 1928-2002)
Actor, encenador

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CARTA AO PRESIDENTE DA CAIXA DE PREVIDÊNCIA DOS PROFISSIONAIS DE ESPECTÁCULOS - 1963


Excelentíssimo Senhor,

Com os meus melhores cumprimentos, venho junto de V. Exa. expor e solicitar o seguinte:

Há já bastante tempo tenho necessidade de duas placas dentárias para substituir um velho e desadaptado aparelho que há anos trago na boca, com prejuízo para as gengivas e restantes dentes.

Consultei para o efeito, há poucos meses, o Exmo. Sr. Dr. Oliveira Pinto, no Centro de Medicina Dentária, que estudou o trabalho de prótese a efectuar, e o orçamentou em 1.900 escudos. Como se tratava de uma verba incompatível com as minhas possibilidades financeiras, nessa mesma altura telefonei para a Caixa, a informar-me da viabilidade de me serem por ela pagas as referidas placas dentárias.
Informou-me o funcionário que então me atendeu, de que eu teria de escrever a V. Exa. uma carta, formulando esse mesmo pedido e dizendo:

- Porque razão eu desejava duas placas dentárias.
- A que se destinavam as mesmas.
- Em quanto importava o seu custo.

Passo, portanto, a esclarecer estes três importantes e nebulosos pontos:

- Desejo duas placas dentárias porque me faltam os meus próprios dentes.
- Destinam-se as mesmas a ser aplicadas, uma ao maxilar inferior, outra ao maxilar superior, para assim menos custosamente eu proceder à mastigação dos alimentos possíveis de adquirir com os meus honorários depois de deduzidos: 5,5% para a Caixa de Previdência, 1,5% para o Fundo de Desemprego e recentemente mais 1% para o imposto Profissional.

Objectarão talvez os esclarecidos Serviços dessa Caixa que eu poderia alimentar-me de papas e bolos, dispensando-me assim o luxo de ostentar dentes que não são meus. De bom grado me sujeitaria a isso, com todos os prejuízos, se não se sobrepusesse um problema de ordem profissional: é que eu sou Actor, e os dentes se me tornam indispensáveis à mecânica da articulação de sons e palavras, isto é: - à Dicção! A isto poderão ainda os mesmos esclarecidos Serviços objectar que não são os dentes tão necessários à articulação quanto eu pretendo, porque… 

Eu sei ao que os Serviços se querem referir, mas a minha formação moral e o meu sentido de camaradagem repudiam energicamente a sugestão de me propor ao ÚNICO cargo em Portugal em que um actor sem dentes pode ganhar a sua vida: o de Professor de Arte de Dizer do Conservatório Nacional. Além disso, se as coisas de facto assim se passaram durante alguns anos (pelo menos enquanto durou o meu curso), já há muito tempo que esse assunto foi revisto e resolvido por razões de ordem trófica e possivelmente didáctica.

- Importa o seu custo em 1.900 escudos, conforme documento que se junta, escrito pelo punho do Exmo. Sr. Dr. Oliveira Pinto, e que poderá em qualquer altura ser confirmado pelo Centro de Medicina Dentária, na Calçada Bento Rocha Cabral em Lisboa.

Estou informado particularmente, não sei se bem se mal, de que é hábito as Caixas de Previdência só liquidarem este género de despesas depois destas estarem pagas pelos beneficiários. Parece-me isso tão absurdo que não quero crer que assim seja. Se eu faço à minha Caixa de Previdência este pedido é porque, em função da minha profissão, acho inteiramente justo que ele me seja deferido, e por não ter eu possibilidades financeiras de arcar com essa despesa. 

Ora se eu for pagar primeiro, para depois a Caixa me pagar a mim, (para o que careceria, evidentemente, de instrumento material) passo automaticamente da situação de beneficiário à de beneficiante. Invertem-se completamente os papéis e as funções de um e de outro: passo eu a ser uma espécie de Previdência da Caixa, e não creio que a Caixa dos Profissionais de Espectáculos ou qualquer outra, esteja na situação crítica de recorrer a favores pessoais para cumprir a sua missão. 

É essa medida tomada, segundo me dizem, para obstar ao facto, que considero vergonhoso, de alguns beneficiários darem a esse dinheiro outro destino que não aquele para que ele é solicitado. Para evitar delongas, e situações insolúveis, desde já me permito sugerir a V. Exa. que os respectivos serviços dessa Caixa entrem directamente em contacto com o Centro de Medicina Dentária, e directamente tratem a liquidação do custo do aparelho, de que urgentemente necessito, pelo que solicito a possível brevidade na apreciação desta pretensão, que me permito submeter ao alto critério de V. Exa. por a achar a todos os títulos justa.

Com os protestos da minha maior consideração, tenho a honra de me subscrever,

De V. Exas.
Atentamente
Armando Cortez




in “Armando Cortez -1928-2002”