NICANOR PARRA
(Chile, 1914 - 2018)
Poeta,
matemático
***
O
TÚNEL
Passei
uma época da minha juventude em casa de umas tias
arrastou-me
para isso a morte de um senhor que nunca deixou de lhes estar ligado
e
cujo fantasma as molestava sem piedade
tornando-lhes
a vida irrespirável.
Ao
princípio mantive-me surdo aos seus telegramas
e
cartas lavradas numa linguagem de outra época
prenhes
de alusões mitológicas
e
de nomes próprios desconhecidos para mim,
muitos
dos quais pertenciam a sábios da antiguidade,
a
filósofos medievais de menor coturno
ou
a simples vizinhos do lugarejo em que habitavam.
Abandonar
assim às boas de supetão a faculdade
rompendo
com os encantos da vida galante
só
para satisfazer os caprichos de três anciãs histéricas
afigurava-se-me
um estorvo irreparável.
E
aturar-lhes toda a infinita classe de problemas pessoais
resultava,
para uma pessoa do meu carácter,
um
futuro pouco lisonjeiro, uma ideia descabelada.
Mas
a verdade é que abobarei quatro anos n’ O Túnel,
em
comunidade com aquelas damas medonhas
quatro
anos de um martírio inalterável
dos
confins da manhã à noite extrema. Breve
as
poucas horas de ripanço debaixo das árvores
converteram-se
em semanas de fastio
em
meses de angústia que dissimulava ao máximo
sob
pena de despertar curiosidade em torno da minha pessoa,
e
assim se passaram anos de ruína e miséria,
séculos
de encarceramento vividos por uma alma
inadvertida
no bojo de uma garrafa de mesa!
A
minha concepção espiritualista do mundo
colocava-me
ante os factos num plano de franca inferioridade:
porque
eu via tudo através de um prisma
ao
fundo do qual as imagens de minhas tias se entrelaçavam
com
filamentos vivos, numa espécie de malha impenetrável,
que
feria a minha vista, tornando-a cada vez mais ineficaz.
Um
jovem de escassos recursos não se dá conta das coisas.
Às
tantas vive numa campânula de vidro que se chama Arte
que
se chama Luxúria, ou que evoca as leis da Ciência,
tratando
de estabelecer contacto com um mundo de relações
que
só existem para ele e para um reduzido grupo de amigos.
Debaixo
dos efeitos de uma espécie de vapor de água
que
se filtrava pelo piso da habitação
permeando
a atmosfera até tudo se tornar invisível
eu
passava as noites diante da minha mesa de trabalho
absorvido
na prática da escrita automática.
Mas
para quê aprofundar estas matérias desagradáveis -
aquelas
matronas vigarizavam-me miseravelmente
com
as suas falsas promessas e as suas bizarras fantasias
e
as suas dores sabiamente simuladas
retiveram-me
anos entre as suas redes
obrigando-me
tacitamente a trabalhar para elas
em
fainas de agricultura
compra
e venda de animais -
até
que uma noite, olhando pela fechadura,
surpreendi
uma delas
-
a tia paralítica! -
a
caminhar lestamente sobre a ponta dos seus pés
e
voltei à realidade com um sentimento dos demónios.
Tradução: António Cabrita
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