quarta-feira, 31 de outubro de 2018

CECÍLIA MEIRELES - Balada das Dez Bailarinas do Cassino


CECÍLIA MEIRELES
(Rio de Janeiro, Brasil, 1901 - 1964)
Poetisa, pintora, professora, jornalista

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BALADA DAS DEZ BAILARINAS DO CASSINO

Dez bailarinas deslizam
Por um chão de espelho.
Têm corpos egípcios com placas douradas,
Pálpebras azuis e dedos vermelhos.
Levantam véus brancos, de ingénuos aromas,
E dobram amarelos joelhos.

Andam as dez bailarinas
Sem voz, em redor das mesas.
Há mãos sobre facas, dentes sobre flores
E com os charutos toldam as luzes acesas.
Entre a música e a dança escorre
Uma sedosa escada de vileza.

As dez bailarinas avançam
Como gafanhotos perdidos.
Avançam, recuam, na sala compacta,
Empurrando olhares e arranhando o ruído.
Tão nuas se sentem que já vão cobertas
De imaginários, chorosos vestidos.

A dez bailarinas escondem
Nos cílios verdes as pupilas.
Em seus quadris fosforescentes,
Passa uma faixa de morte tranquila.
Como quem leva para a terra um filho morto,
Levam seu próprio corpo, que baila e cintila.

Os homens gordos olham com um tédio enorme
As dez bailarinas tão frias.
Pobres serpentes sem luxúria,
Que são crianças, durante o dia.
Dez anjos anémicos, de axilas profundas,
Embalsamados de melancolia.

Vão passando como dez múmias,
As bailarinas fatigadas.
Ramo de nardos inclinando flores
Azuis, brancas, verdes, douradas.
Dez mães chorariam, se vissem
As bailarinas de mãos dadas.





terça-feira, 30 de outubro de 2018

EÇA DE QUEIROZ – A Quinta



EÇA DE QUEIROZ
(Portugal, 1845 - França, 1900)
Escritor

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A QUINTA

De madrugada os galos cantam, a quinta acorda, os cães de fila são acorrentados, a moça vai mungir as vacas, o pegureiro atira o seu cajado ao ombro, a fila dos jornaleiros  mete-se às terras – e o trabalho principia, esse trabalho que em Portugal parece a mais segura das alegrias e a festa sempre incansável, porque é todo feito a cantar. 

As vozes vêm, altas  e desgarradas , no fino silêncio, de além, dentre os trigos, ou do campo em sacha, onde alvejam as camisas de linho cru, e os lenços de longas franjas vermelhejam mais que papoulas. E não há, neste labor, nem dureza nem arranque. Todo ele é feito com a mansidão com que o pão amadurece ao sol. O arado, mais acaricia do que rasga a gleba. O centeio cai por si, amorosamente, no seio atraente da foice. A água sobe onde o torrão tem sede, e corre para lá, gralhando e refulgindo.




in “Correspondência de Fradique Mendes”



segunda-feira, 29 de outubro de 2018

LUÍS DE FREITAS BRANCO - Compositor



LUÍS DE FREITAS BRANCO
(Lisboa, Portugal, 1890 - 1955)
Compositor, pedagogo, crítico, musicólogo

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Luís de Freitas Branco deixou um legado de grande riqueza e eclectismo e é referenciado muitas vezes como “o introdutor do modernismo em Portugal”, responsável pela aproximação da música portuguesa à composição europeia sua contemporânea.

Em 1910, viajou para Berlim para ter aulas com Humperdinck, seguindo em 1911 para Paris onde contactou com Debussy e se familiarizou com o Impressionismo musical, estudando com Gabriel Grovlez.

Da produção musical de Freitas Branco fazem parte obras nos domínios da música religiosa; música de câmara; concertística; sinfónica, que, a partir da década de 20, assumem uma vertente mais neoclássica, mais preocupada com a clareza formal e objectividade (ainda que com as marcas do modernismo), exemplificadas pelas suas quatro sinfonias; colaborações cinematográficas de forte inspiração wagneriana que incluem as bandas sonoras de Douro, Faina Fluvial de Manuel de Oliveira (1934), Gado Bravo (1934) e Frei Luís de Sousa (1950) de António Lopes Ribeiro. 

Entre 1906 e 1908, compôs três poemas sinfónicos inspirados em autores portugueses: Antero de Quental, Depois duma leitura de Júlio Diniz (cuja partitura se encontra desaparecida) e Depois duma leitura de Guerra Junqueiro, obras onde é notória a relação íntima entre a música e a literatura. Mas o interesse do compositor pelo poeta e filósofo revolucionário oitocentista Antero de Quental revelar-se-ia ainda em obras como o poema sinfónico Solemnia Verba (1951), Hino à Razão (1932) ou Três Melodias sobre poemas de Antero (1934-1941).

Obra programática de inspiração literária, o poema sinfónico Antero de Quental é uma peça notável e que, apesar de ser uma composição de juventude, revela um conhecimento técnico na linha pós-wagneriana de grande sofisticação.



in “Casa da Música” (excertos)

domingo, 28 de outubro de 2018

VASCO DE LIMA COUTO – Que povo é este, que povo


VASCO DE LIMA COUTO
(Porto, Portugal, 1924 - Lisboa, 1980)
Poeta, actor, encenador, declamador

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QUE POVO É ESTE, QUE POVO

Que povo é este, que povo
Que compra os rios que tem
Que vende a terra pequena
Mas não sabe donde vem

Que povo é este, que povo
Que respira sem garganta
Que chora porque tem frio
Mas não tem sol quando canta

Que povo é este, que povo
Que é poeta e se alimenta
De tanta maré vazia
No mar que ele próprio inventa

Que povo é este, que povo
Que tenta um sonho esmagado?
É o povo donde eu venho
Todo por dentro amarrado

 




sábado, 27 de outubro de 2018

BILHANA KAVI – Amor furtivo



BILHANA KAVI
(Caxemira, Índia, século XI)
Poeta

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Ficou famoso pela obra, Os Cinquenta Poemas do Amor Furtivo, dedicada a uma princesa que, segundo a lenda, descreve um caso de amor secreto entre os dois.

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AMOR FURTIVO

Mesmo agora se a visse de novo
A essa rapariga de olhos de lótus
E de seios opulentos
Esmagá-la-ia entre os meus braços
E beberia da sua boca como um louco
Como uma abelha insaciável
Sugando uma flor



Tradução: Jorge de Sousa Braga




sexta-feira, 26 de outubro de 2018

NÍKOS KAZANTZÁKIS – Da Odisseia



NÍKOS KAZANTZÁKIS
(Heraclião, Grécia, 1883 — Friburgo, Alemanha, 1957)
Poeta, tradutor, dramaturgo, filósofo

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A fama e o reconhecimento literário surgiram quando as obras de Nikos Kazantzakis foram traduzidas para outras línguas e alcançaram sucesso nas suas adaptações cinematográficas. 

Zorba, o Grego, foi publicado em 1943 e adaptado ao cinema em 1964, protagonizada pelo actor Anthony Quinn. Outra obra de Kazantzakis adaptada para o cinema foi A Última Tentação de Cristo. Na época da sua publicação, o romance causou a excomunhão de Kazantzakis. 

Em 1956 Nikos Kazantzakis recebeu o “Prémio Internacional da Paz”.

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DA ODISSEIA (excerto)



Travou ele com Deus, vórtice, uma tempestuosa polémica:
“[…] Tu criaste o oceano, nós o barco que lhe fende as ondas;
tu criaste o rio, molosso hostil, e nós a ponte segura;
tu criaste os cavalos selvagens, nós a brida que os doma;
criaste a mulher, insofrida, obscura fera de ancas altas,
com seus dengues  e requebros; nós criamos o amor sagrado;
deixaste a morte solta no mundo: que pode ela fazer?
logo geramos, homicida, o filho que a irá lograr.
Relampeja agora e ribomba: acharemos algum remédio;
se teu punhal chegar-nos ao osso, dele não passará!”»


Tradução: José Paulo Paes



quinta-feira, 25 de outubro de 2018

FERREIRA DE CASTRO - Viajar


FERREIRA DE CASTRO
(Oliveira de Azeméis, Portugal, 1898 - Porto, 1974)
Escritor

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Órfão de pai aos 8 anos, emigrou para o Brasil em 1911, tendo trabalhado num seringal na Amazónia. De regresso a Portugal em 1919, fixa-se em Lisboa.
Precursor do neo-realismo, as suas obras, arrancadas à vida impõem-se pela compaixão com os humildes e oprimidos.

Algumas das suas obras: Emigrantes, A Selva, Eternidade, A Tempestade, As Maravilhas Artísticas do Mundo, O Instinto Supremo, Os Fragmentos.

in”Grande Livro dos Portugueses”
                                    
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FERREIRA DE CASTRO:

«Desejaria ficar sepultado à beira de uma dessas poéticas veredas que dão acesso ao Castelo dos Mouros sob as velhas árvores românticas que ali residem e tantas vezes contemplei com esta ideia no meu espírito. Ficar perto dos homens, meus irmãos, e mais próximo da Lua e das estrelas, minhas amigas, tendo em frente a terra verde e o mar a perder de vista – o mar e a terra que tanto amei

***
Viajar

Para conhecer o mundo viajamos,
tocamos pedra a pedra a calçada
e para nos conhecermos, onde vamos,
qual é o rio, o mar, a estrada?

Assim fizeste com todos os sentidos,
criando gestos e palavras quando a voz
faltava ao próprio mundo, e já perdidos,
contavas em viagem à volta de nós.

Ainda mal chegado, já estavas de saída,
e, por aí fora, um dia, um mês, um ano,
até que a missão fosse concluída.

E que nos deste desse teu labor insano,
senão obra universal de amor à vida,
palmo a palmo, um hino ao valor humano?




quarta-feira, 24 de outubro de 2018

JEAN COCTEAU – O embrulho vermelho



JEAN COCTEAU
(França, 1889 - 1963)
Poeta, romancista, cineasta, dramaturgo, actor

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O EMBRULHO VERMELHO

O meu sangue transformou-se em tinta. Era preciso impedir a todo o custo este nojo. Envenenei-me até aos ossos. Cantava no escuro e agora é essa mesma canção que me assusta. Melhor ainda: estou leproso. Conhecem essas manchas de bolor que simulam perfis? Não sei qual o encanto da lepra que engana o mundo e lhe permite beijar-me. Tanto pior para ele! Já não me diz respeito. Só mostrei feridas. Fala-se em fantasia graciosa: culpa minha. É loucura expor-nos inutilmente.

A minha desordem amontoa-se até ao céu. Os que eu amava estavam ligados ao céu por um elástico. Virava a cabeça... já ali não estavam.

De manhã debruço-me, debruço-me e deixo-me cair. Caio de cansaço, de dor, de sono. Sou inculto, nulo. Não conheço nenhum número, nenhuma data, nenhum nome de rio, nenhuma língua, viva ou morta. Tenho zero em história e em geografia. Sem alguns milagres corriam comigo. Para mais, roubei os documentos a um certo J.C. nascido em M.L., dia..., morto aos dezoito anos, depois de uma brilhante carreira poética.

Esta cabeleira, este sistema nervoso mal implantados, esta França, esta terra, não são meus. Repugnam-me. De noite dispo-os em sonhos.

Larguei o embrulho. Que me prendam, que me linchem. Entenda quem puder: Sou uma mentira que diz sempre a verdade.




Tradução: Filipe Jarro








terça-feira, 23 de outubro de 2018

MOSCHÉ ḤAIM LUZZATTO – O Homem é como a Flor



MOSCHÉ AIM LUZZATTO
(Pádua, Itália, 1707 - Acre, Israel, 1747)
Cabalista, escritor, filósofo, poeta, dramaturgo

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Foi um dos fundadores da poesia hebraica moderna.

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O HOMEM É COMO A FLOR

O homem é como a flor do campo, como o arbusto,
Por que vieste à luz? E para quê?
Se tenro e alegre de manhã floresces
eis que de tarde
cortam-te a flor e já não te conhecem.
A morte pasce em ti, como um rebanho.
É possível que acedas à alegria,
se tens sob teus pés escondida a armadilha?
Por que, homem, gozar o mel com a boca
se a tua língua deve estar disposta
a degustar o amargo pó da morte?
Ó morte! Quanto tempo ainda terás, soberba,
para zombar do nosso sofrimento?
Sobre a criança e sobre o velho desces
Fulminante tua lâmina de espada
para ceifar, qual trigo, teus rebanhos.



Tradução: Renata Pallotini




segunda-feira, 22 de outubro de 2018

ÁGOTA KRISTOF – “O Caderno Grande”



ÁGOTA KRISTOF
(Hungria, 1935 – Suíça, 2011)
Escritora, poetisa


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Saiu da Hungria após os acontecimentos que em 1956 ensanguentaram o seu país e o deixaram mais isolado do resto do mundo. Exilou-se em Neuchâtel, na Suíça romanda, onde começou por trabalhar numa fábrica.

O seu primeiro romance, O Caderno Grande (antes, tinha publicado poesia e teatro) foi um sucesso imediato. Narrado por uma par de gémeos que, abandonados pela mãe aos cuidados de uma avó desconhecida, sobrevivem à Segunda Guerra Mundial escondidos numa aldeia perto da cidade de fronteira ocupada pelos alemães, é um conto cruel que mostra o mundo dos adultos visto pelos olhos de dois rapazinhos solitários. 

Escrito numa linguagem despojada e cortante, de um realismo sem concessões, apresenta a violência, o horror, a traição, o assassínio como situações normais.


in “Mulheres Século XX”

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“Começamos pelos peixes. Apanhamo-los pelo rabo e batemos-lhes com uma pedra na cabeça. Habituamo-nos depressa a matar os animais destinados à alimentação: galinhas, coelhos, patos. 
Mais tarde, matamos outros que não seria necessário matar. 

Apanhamos rãs, pregamo-las a uma tábua e abrimos-lhes a barriga. Também apanhamos borboletas, que prendemos com alfinetes em folhas de cartão. Em breve possuímos uma bela colecção. Um dia, penduramos o nosso gato, amarelado, num galho de uma árvore. Pendurado, esticado, parece enorme. Tem sobressaltos e convulsões. Quando deixa de se mexer, tiramo-lo. Fica deitado na erva, imóvel, depois, bruscamente, levanta-se e foge.

Desde esse dia vemo-lo ao longe, de vez em quando, mas nunca mais se aproximou da casa. Nem sequer vem beber o leite que deixamos junto à porta, num pratinho.

A Avó diz:
- Este gato está cada vez mais selvagem.
E nós respondemos:
- Deixe lá, Avó, nós tratamos da saúde aos ratos.
Construímos ratoeiras e aos ratos que lá caem afogamo-los em água a ferver.”
        

in”O Grande Caderno”








domingo, 21 de outubro de 2018

NECESSIDADES




NECESSIDADES

Assim que o mulá saiu da mesquita, logo após as orações, um mendigo sentado na rua pediu-lhe esmola. A seguinte conversa teve lugar:

Mulá: - Você é extravagante?

Mendigo: - Sou, mulá.

Mulá: - Gosta de sentar-se por aí para tomar um café e fumar?

Mendigo: - Gosto.

Mulá: - Suponho que gosta de ir aos banhos todos os dias?

Mendigo: - Gosto.

Mulá: - … como também talvez se divirta bebendo com os amigos.

Mendigo: - É, gosto de todas essas coisas.

- Chega, já chega – disse o mulá, e deu-lhe uma moeda de ouro.

Alguns metros adiante, outro mendigo, que havia escutado a conversa anterior, pediu-lhe inoportunamente uma esmola.

Mulá: - Você é extravagante?

Mendigo: - Não, mulá.

Mulá: - Gosta de sentar-se por aí para tomar café e fumar?

Mendigo: - Não.

Mulá: - Suponho que gosta de ir aos banhos todos os dias…

Mendigo: -Não.

Mulá: -… como também talvez se divirta bebendo com os amigos. 

Mendigo: - Não, quero apenas viver modestamente e rezar.

O mulá, então, estendeu-lhe uma pequena moeda de cobre.

- Mas por que – queixou-se o mendigo – você me dá um tostão a mim, um homem pio e frugal, enquanto dá àquele companheiro extravagante uma moeda de real valor?

- Ah! – replicou o mulá – as necessidades dele são maiores que as suas.




in “As Parábolas e Contos de Nasrudin” – organizado por Alexandre Rangel.



sábado, 20 de outubro de 2018

ALMEIDA GARRETT – Barca Bela


ALMEIDA GARRETT
(Porto, Portugal, 1799 — Lisboa, 1854)
Escritor, poeta

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Foi o introdutor do romantismo em Portugal e uma das suas maiores figuras.
***

BARCA BELA

Pescador da barca bela,
Onde vais pescar com ela,
              Que é tão bela,
            Oh pescador?

Não vês que a última estrela
No céu nublado se vela?
               Colhe a vela,
               Oh pescador!

Deita o lanço com cautela,
Que a sereia canta bela...
                Mas cautela,
                 Oh pescador!

Não se enrede a rede nela,
Que perdido é remo e vela,
                   Só de vê-la,
                    Oh pescador

Pescador da barca bela,
Inda é tempo, foge dela,
           Foge dela
                Oh pescador!



Imagem: retrato de Almeida Garrett (1881) - José Malhoa


sexta-feira, 19 de outubro de 2018

RÚBEN DARÍO - Caracol



RÚBEN DARÍO
(Nicarágua, 1867 – 1916)
Poeta

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Foi um dos maiores representantes da poesia modernista da América Latina.
***
CARACOL

Numa praia encontrei um caracol de ouro,
maciço e recamado das pérolas mais finas;
tocou-o Europa com suas mãos divinas
quando foi pelas ondas sobre o celeste touro.·

A meus lábios ergui o caracol sonoro
e suscitei o eco das dianas marinas;
levei-o a meus ouvidos e tantas azuis minas
contaram-me em voz baixa seu secreto tesouro.

Assim me chega o sal dos ventos tão amargos
que em suas veias plenas sentiu a nave Argos
quando amaram os astros o sonho de Jasão;

e oiço um rumor de ondas e um incógnito acento
um ondular profundo e um misterioso vento...
(O caracol a forma possui de um coração.)



Tradução: José Bento



quinta-feira, 18 de outubro de 2018

LÊDO IVO - Passeio no jardim



LÊDO IVO
(Maceió, Brasil, 1924 — Sevilha, Espanha, 2012)
Poeta, romancista, jornalista
***
Em 1944, publica seus primeiros poemas no livro As Imaginações. Os anos subsequentes vêem a sua obra literária ganhar corpo com o lançamento de poesias, romances, contos, crónicas e ensaios.
Em 2004 é lançada a primeira edição das suas obras completas, com seis décadas de poesia e prosa. Para os críticos e historiadores literários, Ivo filia-se na terceira geração do modernismo, com evidente preocupação com a linguagem e o retorno a sensos estéticos anteriores à fase experimental do movimento. 
in “Enciclopédia Itaú Cultural” (excertos)

***
PASSEIO NO JARDIM

Quem aspira o perfume
deste longo jardim
de palavras cortadas
como se fossem caules
vê no chão espalhadas
as pétalas da rosa:
estilhaços de mim.

Nunca me completei
e sonho o que seria
se a mim me reunisse
a mim mesmo somado
como um ramo de flores
ou a gota de orvalho
na manhã condenada.

Sempre me procurei
dentro de mim perdido
em meus próprios domínios.
E no nunca me achar
é que me encontro e sou.
Só parto ao regressar.
Só venho quando vou.

quarta-feira, 17 de outubro de 2018

VICTOR SEGALEN – A minha amante tem as virtudes da água



VICTOR SEGALEN
(França, 1878 –1919)
Poeta, arqueologista, explorador, crítico literário

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É autor de uma valiosa obra consagrada à Oceania e à China.

***

A MINHA AMANTE TEM AS VIRTUDES DA ÁGUA


A minha amante tem as virtudes da água : um sorriso claro, os gestos fluentes, uma voz pura que canta gota a gota. - E por vezes, - sem querer – um fogo passa pelo meu olhar, sabe como ateá-lo estremecendo : água tirada sobre as brasas .

Minha água viva, ei-la derramada, toda, sobre a terra! Foge-me, desliza; - e tenho sede , e corro atrás dela.

Com minhas mãos formo uma taça. Com minhas duas mãos embriagado estanco-a, estreito-a, levo-a aos lábios :

E trago uma mão cheia de lama.


 

Tradução: Filipe Jarro

terça-feira, 16 de outubro de 2018

GONÇALVES CRESPO - O Juramento do Árabe



GONÇALVES CRESPO
(Rio de Janeiro, Brasil, 1846 — Lisboa, Portugal, 1883)
Poeta

***
Morreu bastante novo e, exactamente, no apogeu da sua carreira gloriosa. Pelo que a sua obra como poeta, já então notabilísima, quase ficou reduzida aos dois volumes de Obras Completas, dos quais se destaca o Juramento do Árabe, cujos versos são considerados dos mais belos e dos mais representativos da poesia clássica portuguesa.

***

in “Dicionário da Literatura Portuguesa”

***
O JURAMENTO DO ÁRABE

Baçus, mulher de Ali, pastora de camelas,
viu de noite, ao fulgor das rútilas estrelas,
Vail, chefe minaz de bárbara pujança,
matar-lhe um animal. Baçus jurou vingança;
corre, célere voa, entra na tenda e conta
a um hóspede de Ali a grave e inulta afronta.
- "Baçus!" - disse, tranquilo, o hóspede gentil -
"Vingar-te-ei com meu braço: eu matarei Vail".
Disse e cumpriu.

Foi esta a causa verdadeira
da guerra pertinaz, horrível, carniceira,
que as tribos dividiu. Na luta fratricida,
Omar, filho de Anru, perdera o alento e a vida.
Anru, que lanças mil aos rudes prélios leva
e que em sangue inimigo, irado, os ódios ceva,
incansável procura, e é sempre embalde, o vil
matador de seu filho, o tredo Mualhil.
Uma noite, na tenda, a um moço prisioneiro,
recém-colhido em campo, o indómito guerreiro
falou severo assim:
- "Escravo, atende e escuta:
Aponta-me a região, o monte, o plaino, a gruta
em que vive o traidor Mualhil; dize a verdade;
dá-me que o alcance vivo, e é tua a liberdade!"
E o moço perguntou:
- "É por Alá que o juras?"
- "Juro!" - o chefe tornou.
- "Sou o homem que procuras!
Mualhil é o meu nome: eu fui que despedacei
a lança de teu filho e aos pés o subjuguei!"
E, intrépido, fitava o atónito inimigo.
Anru volveu:
- "És livre! Alá seja contigo!"