domingo, 6 de outubro de 2019

JOÃO GASPAR SIMÕES - Da Cultura e da Erudição (V)



JOÃO GASPAR SIMÕES
(Figueira da Foz, Portugal, 1903 — Lisboa, 1987)
Dramaturgo, crítico literário, tradutor

***

DA CULTURA E DA ERUDIÇÃO

(continuação)

Tudo quanto diz, tudo o que lhe interessa, tudo que lhe mereça atenção – respeita aos arquivos, aos fundos da história, aos materiais perfeitamente mortos e decompostos da vida. 

Da literatura é-lhe acessível um pormenor bibliográfico de Camões; da história, a descoberta de um documento relativo à data precisa dum acontecimento insignificante; da arte, o nome de todos os familiares, amigos e conhecidos dum qualquer pintor, e assim por diante. O que é a literatura? – já se esqueceu; o que é história? – nunca o soube; que vem a ser a arte? – jamais o saberá. Por fim, o erudito convence-se de que os escritores, os homens duma maneira geral, e os artistas - escreveram, viveram e criaram obras de arte, para ele se entreter a remexer nas suas cinzas. Eis o que há em Portugal – eruditos. 

Os professores de literatura são eruditos, os historiadores, são eruditos, os críticos de arte – eruditos são. Mas tudo estaria bem, se houvessem verdadeiros espíritos cultos. Então os eruditos seriam relegados à sua actividade – a erudição, e não preencheriam os lugares que só àqueles devem pertencer. 

Enquanto em Portugal se não tiver, todavia, a consciência profunda da cultura – profunda e viva – os eruditos continuarão a desempenhar o desastroso papel de espíritos cultos.

(Fim)


in – “PRINCÍPIO” – Publicação de Cultura e Politica (1930) – Renascença Portuguesa
 





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