quinta-feira, 31 de dezembro de 2020

MÁRIO QUINTANA - Esperança



MÁRIO QUINTANA
(Alegrete, Brasil, 1906 - Porto Alegre, 1994)
Poeta, tradutor

***
ESPERANÇA

Lá bem no alto do décimo segundo andar do Ano
Vive uma louca chamada Esperança
E ela pensa que quando todas as sirenas
Todas as buzinas
Todos os reco-recos tocarem
Atira-se
E
— ó delicioso vôo!
Ela será encontrada miraculosamente incólume na calçada,
Outra vez criança...
E em torno dela indagará o povo:
— Como é teu nome, meninazinha de olhos verdes?
E ela lhes dirá
(É preciso dizer-lhes tudo de novo!)
Ela lhes dirá bem devagarinho, para que não esqueçam:
— O meu nome é ES-PE-RAN-ÇA...







quarta-feira, 30 de dezembro de 2020

PLATÃO – O Testamento



PLATÃO
(Atenas, Grécia, 428/427 – 348/347 a.C.)
Filósofo, matemático

***

O TESTAMENTO DE PLATÃO
Os bens de Platão no momento da sua morte


Diógenes Laércio refere que Platão deixou em testamento os seus bens do seguinte modo:

«A fazenda de Hefistíades, que confina a norte com o templo de Cefísia, a sul com o heracleu dos Hefistíades, a levante com as terras de Arquestrato Freario e a poente com as de Filipe Colideo, não seja permutada ou vendida a ninguém, mas que passe a ser propriedade do meu filho Adimanto, de acordo com a lei.

Do mesmo modo, deixo a Iresides a herdade que comprei para Calimacom, que confina a norte com as terras de Aurimedón Mirrinusio, a sul com as de Demostrato Xipeterón, a levante com as do mencionado Mirrinusio e a poente com o Cefiso.

Três minas de prata.
Um cálice de prata que pesa 165 dracmas.
Uma taça que pesa 165 dracmas.
Um anel de ouro e uns brincos, também de ouro, que pesam quatro dracmas e três óbolos.
O canteiro Euclides deve-me três minas.

Dou a liberdade a Artemisa, permanecendo como escravos Ticón, Bicta, Apolionades e Dionísio. Deixo também os móveis, de acordo com o inventário do qual guarda cópia Demétrio. Não devo nada a ninguém. Os meus executores testamentários serão Leóstenes, Espeusipo, Demétrio, Hegias, Heurimedon, Calímaco e Trasipo.»




in “Grandes Pensadores”

terça-feira, 29 de dezembro de 2020

CAMÕES – A Máquina do Mundo


                                     A MÁQUINA DO MUNDO
Lusíadas - Canto X

[…]    

Não andam muito, que no erguido cume
Se acharam, onde um campo se esmaltava
De esmeraldas, rubis, tais que presume
A vista que divino chão pisava.
Aqui um globo vem no ar, que o lume
Claríssimo por ele penetrava,
De modo que o seu centro está evidente,
Como a sua superfície, claramente.

Qual a matéria seja não se enxerga,
Mas enxerga-se bem que está composto
De vários orbes, que a Divina verga
Compôs, e um centro a todos só tem posto. 
Volvendo, ora se abaixe, agora se erga,
Nunca se ergue ou se abaixa, e um mesmo rosto
Por toda a parte tem; e em toda a parte
Começa e acaba, enfim, por divina arte,

Uniforme, perfeito, em si sustido,
Qual, enfim, o Arquétipo que o criou.
Vendo o Gama este globo, comovido
De espanto e de desejo ali ficou.
Diz-lhe a Deusa: — O trasunto, reduzido
Em pequeno volume, aqui te dou
Do Mundo aos olhos teus, para que vejas
Por onde vás e irás e o que desejas.

Vês aqui a grande máquina do Mundo,
Etérea e elemental, que fabricada
Assim foi do Saber, alto e profundo,
Que é sem princípio e meta limitada.
Quem cerca em derredor este rotundo
Globo e sua superfície tão limada,
É Deus: mas o que é Deus, ninguém o entende,
Que a tanto o engenho humano não se estende.

[…]

segunda-feira, 28 de dezembro de 2020

PIER PAOLO PASOLINI - À minha nação



PIER PAOLO PASOLINI
(Bolonha, Itália, 1922 - Óstia, 1975)
Cineasta, poeta, escritor

***

É um dos maiores intelectuais italianos do século XX. Cineasta consumado, a sua carreira reparte-se entre a escrita literária, o guionismo e o jornalismo.
Acérrimo crítico da burguesia italiana em ascensão no pós-guerra e da sociedade consumista, revelou-se em todo o seu esplendor como figura maior que previu e denunciou os males da sociedade contemporânea. Foi assassinado em Ostia, nos arredores de Roma, em Novembro de 1975.

in “Antígona”

***

À MINHA NAÇÃO

Não povo árabe, não povo balcânico, não povo antigo,
mas nação vivente, mas nação europeia:
e o que és? Terra de infantes, famintos, corruptos,
governantes a soldo do latifúndio, prefeitos reaccionários,
advogadinhos sebentos de brilhantina e pés imundos,
profissionais liberais canalhas como tios carolas,
um quartel, um seminário, uma praia livre, um bordel!
Milhões de pequenos burgueses como milhões de porcos
a pastar empurrando-se sob intactos palacetes,
entre casas coloniais já descascadas feito igrejas.
E justo porque exististe, agora não existes,
justo porque foste consciente, és inconsciente.
E só porque és católica, não podes pensar
que teu mal é todo o mal: culpa de todo mal.
Naufraga em teu mar maravilhoso, liberta o mundo.





Tradução: Maurício Santana Dias




domingo, 27 de dezembro de 2020

LENDA da Lagoa das Furnas




LENDA DA LAGOA DAS FURNAS

Há anos, no local em que hoje é a Lagoa das Furnas, havia uma aldeia onde as pessoas viviam felizes e se divertiam sem parar.

Uma bela manhã, um jovem, quando foi buscar água à fonte para os arranjos da casa e para dar aos animais, viu que a água era salgada. Este acontecimento estranho fez com que o moço adivinhasse que alguma coisa anormal ia acontecer com a população da sua terra. Apoquentado, correu a contar aos vizinhos o que tinha visto e o que pensava, mas ninguém o acreditou.
 
Passados dias, o rapaz voltou à fonte e ainda ficou mais espantado quando viu um peixe sair. Convenceu-se definitivamente de que iria acontecer qualquer coisa desagradável à sua pequena aldeia. A população não fez caso. O avô, homem já velho, disse às pessoas que parassem com os bailes e festas e que fosse um mais ligeiro ao alto de um pico a ver se no mar, para os lados do norte, estava uma ilha à vista.

O povo pôs-se a rir e continuou com os festejos. Mas o velho subiu como pôde mais o neto ao alto do monte e de lá começou a chamar pelos outros e a dizer-lhes que fossem para a igreja porque estava à vista a ilha encantada das Sete Cidades, sinal de desgraça. Ninguém lhe ligou.

Por esses dias, o dito rapaz teve de sair da aldeia para ir vender alguns animais na freguesia vizinha. Demorou algum tempo no seu negócio, mas voltou finalmente com a alegria de quem esteve longe e chega a casa. 

Quando se aproximava, começou a aperceber-se que tudo lhe parecia diferente. Finalmente chegou. Porém, no lugar onde deveria encontrar a sua terra, só estava uma grande lagoa de águas tranquilas.

Um cataclismo tinha soterrado para sempre a povoação, mas lá em baixo a vida continuava. É por isso que hoje nesse lugar se percebe um cheiro intenso de pão cozido pelas pessoas que continuam a sua vida na povoação escondida pela bela Lagoa das Furnas.



Fonte: Ângela Furtado-Brum - Açores: Lendas e outras histórias - Ponta Delgada.




sábado, 26 de dezembro de 2020

JOÃO CABRAL DE MELO NETO – O Relógio



JOÃO CABRAL DE MELO NETO
(Recife, Brasil, 1920 - Rio de Janeiro, 1999)
Poeta

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O RELÓGIO

Ao redor da vida do homem
há certas caixas de vidro,
dentro das quais, como em jaula,
se ouve palpitar um bicho.

Se são jaulas não é certo;
mais perto estão das gaiolas
ao menos, pelo tamanho
e quadradiço de forma.

Umas vezes, tais gaiolas
vão penduradas nos muros;
outras vezes, mais privadas,
vão num bolso, num dos pulsos.

Mas onde esteja: a gaiola
será de pássaro ou pássara:
é alada a palpitação,
a saltação que ela guarda;

e de pássaro cantor,
não pássaro de plumagem:
pois delas se emite um canto
de uma tal continuidade.





sexta-feira, 25 de dezembro de 2020

CARTA DE ISABERTA PARA O PRIMO EPIFÁSIO




CARTA DE ISABERTA PARA O PRIMO EPIFÁSIO  


Meu querido priminho Epifásio

Foi com grande alegria que recebi a tua cartinha que vem escrita, como de costume, com tanto brilho que até ilustra uma pessoa.

Aliás, tu sempre foste o intelectual da família. Cada um é para o que nasce e tu, aos 6 meses, te caiu aquele dicionário na cabecinha que ficaste assim. Foi o destino que te quis moldar a moleirinha para altos voos.

Já o mesmo não posso dizer do meu Bentinho que, embora tivesse muita vocação para as letras, coitadinho, nunca conseguiu acertar com a ortografia. Tu sempre foste muito mais dotado. Tinham vocês aí uns 10 anitos, ainda o meu Bentinho das vogais só sabia dizer o «Aaaaa» e já tu eras capaz de soletrar para cima de 46 letras do alfabeto.

E não é só na inteligência, tu também sempre foste um menino de muito bom coração. Lembras-te quando ficaste cheio de pena da tia Nafetalina nunca sair de casa e a quiseste levar a dar um passeio ao jardim na cadeirinha de rodas? Só foi pena não te teres lembrado dos 3 andares de escada. Coitadinha da tia Nafetalina. Ficou de tal maneira, que o médico no hospital até disse que uma cadeirinha de rodas já não bastava. Era preciso repartir a tia por duas cadeirinhas.

E da outra vez, quando quiseste ensinar a avozinha a nadar em estilo mariposa no lava-loiças? Tu sempre foste muito pedagógico. A avozinha é que não tem queda para a marinha. Tu bem quiseste começar por lhe dar endurância de pulmão. Ela gritou tanto, coitadinha. É falta de compreensão! Mas estava a progredir muito bem. Há mais de cincos minutos que tinha a cabeça debaixo de água!

E o prestável que tu eras! Sempre pronto a fazer um favor. Ás vezes até sem a gente pedir. Como naquele dia em que o Horácio estava a mudar uma lâmpada e, para ele ver melhor, tu foste ligar o quadro. O Horácio deu cá um salto! O que a gente se riu. Mas nervoso como ele é ficou para ali a tremer e com os olhos esbugalhados mais de meia hora. E como tem aquele mau feitio virou-se contra ti, pobrezinho. Pendurou-te pelas orelhas, com duas molas, da corda da roupa. Se calhar foi por isso que ficaste com as orelhitas assim. Mas não te deixes inferiorizar, não é por causa disso que as raparigas deixam de olhar para ti. E hás-de ter ficado com certeza a ouvir melhor.

Fico muito contente de saber que estás a frequentar a tropa porque aí é que um homem se faz homem. E tu, com a tua capacidade, estás  aqui estás general. Pelo menos.

Já agora gostava que me explicasses o que é aquela coisa da lei da defesa. Sim, porque o que eu acho que devíamos ter era uma lei do ataque para não termos que estar a depender de ninguém. Assim, não tínhamos que estar à espera que nos atacassem para nos defendermos. Íamos logo defender-nos para a terra dos outros, antes que eles venham defender-se para a nossa terra. Se calhar a lei chama-se de defesa para disfarçar. Para os outros não perceberem que nos estamos a preparar para os atacar.

Recebe muitos beijinhos, abraços e cumprimentos de toda a família e em especial desta tua prima que te estima e que se assina


ISABERTA




in “PÃOCOMANTEIGA” - Bernardo Brito e Cunha, Carlos Cruz, Eduarda Ferreira, José Duarte, Mário Zambujal, Orlando Neves.

Imagem: pintura da artista plástica brasileira, Camila Rahal     



quinta-feira, 24 de dezembro de 2020

CARTA DE EPIFÁSIO PARA A PRIMA ISABERTA




CARTA DE EPIFÁSIO PARA A PRIMA ISABERTA


Minha querida e osculada prima Isaberta

Tenho sabido novidades da prima e de todos os vossos por interposição da minha mana Ortôncia. Tomei também conhecimento de que estão todos de boa compleição, o que só me deixa aturdido de contentamento.

Infelizmente não vos tenho podido bafejar com a minha prosa em concomitância de que nos últimos anos os estudos me têm ocupado o tempo todo. Graças a Sta. Ingrácia terminei a 1ª classe com grande brilhantês de avaliações e nesta inerência fui chamado para fazer o serviço militar.

A minha mãezinha quer que eu faça o prosseguimento dos estudos para atingir um degrau de advogado ou pelo menos um emprego ao balcão na mercearia do sr. Ausêncio. Eu ambicionava muito de lhe dar essa alegria mas não sei se terei envolvência para tanto peso. A ver vamos, como dizia o cego.

No entretanto tenho frequentado a tropa com grande satisfação e beneficência. Ainda somente cá me capacito há três semanas e já pude auscultar a grande delicadeza que reina quer nos oficiais superiores, quer nos oficiais inferiores, quer no resto.

Ainda esta manhã preparava-me para compenetrar no gabinete do nosso capitão da companhia, rebati os calcanhares e disse: «Vossa insolência, meu capitão, dá-me permissividade para entrar?» E o capitão respondeu: «Insolente serás tu e mais toda a tua família!». Ora isto são finezas que não se enxergam nos oficiais de mais parte nenhuma, até porque além da tropa não há oficiais em mais parte nenhuma, se se fizer a retiragem dos oficiais de finanças que são uma excepcionalidade.

O que tem andado a ser alvo da minha cogitação é saber porque é que a cavalaria é uma arma. Empreendi na problemática e cheguei à concludência que deve ser difícil andar a atirar com os cavalos às faces do inimigo. Devia ser preciso ter umas fisgas muito grandes para fazer a arremeçagem dos esquadrúpedes, e em polivalência, ultrapassar a força da gravidade  que é uma coisa, não sei se a prima sabe, que todos nós temos mas os cavalos têm mais porque são mais pesados.

Mas a minha maior admirância e verbosidade vai para a arma de transmissões que é a arma mais pacífica de todas. Encarne a prima na conclusidade de que se só houvesse a arma de transmissões as guerras eram por telefone ou telegrama.

Estou com muitas saudades de todos mas espero aproveitar uma folga, ou mesmo antes, para vos transportar pessoalmente as minhas saudações e demonstrar-vos a minha farda que tenho trazido tão engraxada e desentupida que até pareço um bombeiro de Cagarelos em dia de festa.

Até que esse dia venha com a maior proximidade, receba os meus mais hipotéticos desejos de que tudo vos escorra pelo melhor deste vosso primo que muito vos obsequeia.


EPIFÁSIO

soldado raso




in “PÃO COM MANTEIGA” - Bernardo Brito e Cunha, Carlos Cruz, Eduarda Ferreira, José Duarte, Mário Zambujal, Orlando Neves.

Imagem: pintura de Emerson Fialho (Recife, Brasil, 1973)





quarta-feira, 23 de dezembro de 2020

RAMALHO ORTIGÃO – O Presépio



RAMALHO ORTIGÃO
(Porto, Portugal, 1836 - Lisboa, 1915)
Escritor

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O PRESÉPIO

O objecto do culto, da admiração, do entusiasmo, do enlevo dos pequenos do meu tempo era o velho presépio, tão ingénuo, tão profundamente infantil, tão cheio de coisas risonhas, pitorescas, festivas, inesperadas.

Era uma grande montanha de musgo, salpicada de fontes, de cascatas, de pequenos lagos, serpenteada de estradas em ziguezagues e de ribeiros atravessados de pontes rústicas. Em baixo, num pequeno tabernáculo, cercado de luzes, estava o divino bambino, loiro, papudinho, rosado como um morango, sorrindo nas palhas do seu rústico berço, ao bafo quente da benigna natureza representada pela vaca trabalhadora e pacífica e pela mulinha de olhar suave e terno.

A Santa Família contemplava em êxtase de amor o delicioso recém-nascido, enquanto os pastores, de joelhos, lhe ofereciam seus presentes, as frutas, os frângãos, o mel, os queijos frescos.

A grande estrela de papel doirado, suspensa do tecto por um retrós invisível, guiava os três reis magos, que vinham a cavalo descendo a encosta, com as suas púrpuras nos ombros e as suas coroas na cabeça.




in “Farpas I”
Imagem: Ramalho Ortigão, por Columbano - Museu Grão Vasco - Viseu





terça-feira, 22 de dezembro de 2020

ADOLFO SIMÕES MÜLLER - Quando eu era pequenino



ADOLFO SIMÕES MÜLLER
(Lisboa, Portugal, 1909 - 1989)
Escritor, poeta

***
A Fundação Calouste Gulbenkian galardoou-o, em 1982, com o “Grande Prémio de Literatura Infantil”, em homenagem à sua obra.

***

QUANDO EU ERA PEQUENINO

Quando eu era pequenino,
gostava de ouvir contar
histórias de princesinhas
encantadas ao luar.

Havia então lá em casa
uma criada velhinha,
a Sérgia contava histórias
- e que graça que ela tinha!

Lendas de reis e de fadas,
inda me incheis a lembrança!
Que saudades de vós tenho,
ó meus contos de criança!

“Era uma vez...” As histórias
começavam sempre assim;
e eu, então, sem me mexer,
ouvia-as até ao fim.

Lembro-me ainda tão bem!
Os irmãos à minha beira,
calados! E a boa Sérgia
contava desta maneira:

“Era uma vez...” E depois,
olhos fitos nos seus lábios,
ouvia contos sem conta
de gigantes e de sábios”.

“Era uma vez...” E, por fim,
a voz da Sérgia parava...
E assim como eu te contei
era como ela contava.

Ai! que saudade, que pena,
que nos meus olhos tu vês!
Eu sentava-me e ela, então,
começava: - “Era uma vez...”