FERNANDO DACOSTA
(Caxito, Angola, 1940)
Escritor,
jornalista
***
ESTALIDOS
DE MADEIRA - CRIADORES DE GADO
As divisões da casa onde
Natália Correia viveu e morreu eram harmoniosas, amplas, quinto andar sóbrio,
sólido, paredes e decoração espessas, paralelo à Avenida da Liberdade, junto ao
Marquês de Pombal, em Lisboa.
Ecos de vozes no exterior,
estalidos de madeiras no interior, reposteiros de veludo, estantes de vibrações,
objectos de memórias, davam-lhe uma sedução inesquecível – a da passagem do
tempo, da finitude.
«Um dia vim aqui visitar
uns amigos e a sua atmosfera atraiu-me logo», conta-me. «Eles foram-se embora e
este espaço esteve muito tempo devoluto, como que à espera de eu me casar e o
alugar.»
Casou-se e alugou-o.
Deixou o andar onde residia com a mãe, a irmã, uma criada, a menina Esmeralda,
Vera Lagoa e o filho, e mudou-se.
Hóspede e amigo da mãe,
Cardoso Mata, um bibliófilo afamado, ceder-lhe-ia a sua gigantesca biblioteca
(avaliada em mais de dez mil contos na época), que Natália compraria e
enriqueceria imparavelmente.
O centro da casa
situava-se na zona de estar (biblioteca, escritório, área de comer, de receber,
de festejar, de preguiçar), espaço grandioso forrado a livros, a quadros, a
fotos, a referências, a recordações, a símbolos, mesa gigantesca ao centro,
mármore negro, pés esculpidos de oiro, tinteiro de cobre, candeeiro de haste,
poltronas de rebordos, televisão sem som, telefone sem fios, recordações sem
negrumes.
Nele estiveram vultos
universais, Henry Miller, Ionesco, Claude Roi, Michaux, nele representou-se
Sartre (clandestinamente) pela primeira vez em Portugal.
A sua peça Huie Clos, proibida pela Censura, foi
traduzida por Natália Correia e, com encenação de Carlos Wallenstein,
representada em casa da poeta – que a protagonizou.
Assistiram-lhe, entre
outros, Almada Negreiros, Urbano Tavares Rodrigues, Sophia de Mello Breyner,
Francisco Sousa Tavares, Fernando Amaro, Augusto de Figueiredo, Isabel
Meirelles, Isabel da Nóbrega, Gaspar Simões, Maria Germana Tânger e Martins
Correia. Os jornais da época noticiaram com ênfase o acontecimento, considerado
um marco na vida cultural de então.
Franjas mais empenhadas no
neo-realismo, a grande escola então dominante, criticam-na acidamente. Natália
riposta-lhes: «Os que se reclamam de criar obras literárias e artísticas tendo
apenas como horizonte os pastos socioeconómicos não passam de criadores …de
gado.»
«Aqui sentimo-nos ou no
século XVIII ou no ano dois mil», exclamou Henry Miller depois de assistir a
uma discussão sobre o amor. «Foi preciso eu vir a Portugal para encontrar uma
verdadeira pitonisa», exclamou, referindo-se à anfitriã.
Na sala, as atenções
convergiam para um quadro sobre a lareira, ao alto, notável auto-retrato que
ela fizera; duas décadas atrás entregara-se, durante meses, exclusivamente à
pintura.
«Pintei como terapia.
Ferida, nessa altura, pela notícia da morte da minha mãe, que estava no Brasil,
agarrei-me, rangendo de dor, aos pincéis e fechei-me num quarto durante um
ano.»
in “O Botequim da Liberdade”
Sem comentários:
Enviar um comentário