João Cabral de
Melo Neto nasceu no Recife, Brasil, no dia 9 de Janeiro de 1920, e
viveu até 9 de Outubro de 1999.
Foi poeta e diplomata.
Em 1942,
escreveu o seu primeiro livro de poemas, intitulado: “Pedra de Sono”, de forte
tendência surrealista.
Foi um dos activos mensageiros da “Geração
de 45”.
Em 1966 publicou o seu mais famoso livro
“ Morte e Vida Severina”, um poema dramático, que foi, e continua sendo, um
sucesso teatral. A obra foi musicada pelo Chico Buarque.
Pertenceu à
Academia Brasileira de Letras.
Em 1990, foi-lhe atribuído o “Prémio
Camões”.
O Cão Sem Plumas
A cidade é passada pelo rio
como
uma rua
é
passada por um cachorro;
uma
fruta
por uma espada.
O rio ora lembrava
a língua mansa de um cão
ora o ventre triste de um cão,
ora o outro rio
de aquoso pano sujo
dos olhos de um cão.
Aquele rio
era como um cão sem plumas.
Nada sabia da chuva azul,
da fonte cor-de-rosa,
da água do copo de água,
da água de cântaro,
dos peixes de água,
da brisa na água.
Sabia dos caranguejos
De lodo e ferrugem.
Sabia da lama
como de uma mucosa.
Devia saber dos polvos.
Sabia seguramente
da mulher febril que habita as ostras.
Aquele rio
jamais se abre aos
peixes,
ao brilho,
à inquietação de
faca
que há nos peixes.
Jamais se abrem em peixes.
pobres e negras
como negros.
Abre-se numa flora
suja e mais mendiga
como são os mendigos negros.
Abre-se em mangues
de folhas duras e crespos
como um negro.
Liso como o ventre
de uma cadela
fecunda,
o rio cresce
sem nunca explodir.
Tem, o rio,
um parto fluente e
invertebrado
como o de uma cadela.
E jamais o vi ferver
(como ferve
o
pão que fermenta).
Em silêncio,
o rio carrega sua fecundidade pobre,
grávido de terra negra.
Em silêncio se dá:
em capas de terra negra,
em botinas ou luvas de terra negra
para o pé ou a mão
que mergulha.
Como
às vezes
passa
com os cães,
parecia
o rio estagnar-se.
Suas
águas fluíam então
mais densas e mornas;
fluíam com as ondas
densas e mornas
de uma cobra.
Ele
tinha algo, então,
da
estagnação de um louco.
Algo
da estagnação
do
hospital, da penitenciária, dos asilos,
da
vida suja e abafada
(de
roupa suja e abafada)
por onde se veio
arrastando.
Algo da estagnação
dos palácios cariados,
comidos
de
mofo e erva-de-passarinho.
Algo
da estagnação
das
árvores obesas
pingando
os mil açúcares
das
salas de jantar pernambucanas,
por onde se veio
arrastando.
(É nelas,
mas de costas para o rio,
que "as grandes famílias
espirituais" da cidade
chocam os ovos gordos
de sua prosa.
Na paz redonda das cozinhas,
ei-las a revolver viciosamente
seus caldeirões
de preguiça viscosa).
Seria
a água daquele rio
fruta
de alguma árvore?
Por
que parecia aquela
uma
água madura?
Por
que sobre ela, sempre,
como que iam pousar
moscas?
Aquele
rio
saltou
alegre em alguma parte?
Foi
canção ou fonte
Em
alguma parte?
Por
que então seus olhos
vinham
pintados de azul
nos mapas?
João Cabral de Melo Neto, in “O Cão Sem Plumas”.
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