sábado, 7 de setembro de 2013

JOÃO CABRAL DE MELO NETO

 
 
         João Cabral de Melo Neto nasceu no Recife, Brasil, no dia 9 de Janeiro de 1920, e viveu até 9 de Outubro de 1999.
        Foi poeta e diplomata.
        Em 1942, escreveu o seu primeiro livro de poemas, intitulado: “Pedra de Sono”, de forte tendência surrealista.
        Foi um dos activos mensageiros da “Geração de 45”.
        Em 1966 publicou o seu mais famoso livro “ Morte e Vida Severina”, um poema dramático, que foi, e continua sendo, um sucesso teatral. A obra foi musicada pelo Chico Buarque.
        Pertenceu à Academia Brasileira de Letras.
        Em 1990, foi-lhe atribuído o “Prémio Camões”.
 
 
O Cão Sem Plumas
 
A cidade é passada pelo rio
como uma rua
é passada por um cachorro;
uma fruta
por uma espada.
O rio ora lembrava
a língua mansa de um cão
ora o ventre triste de um cão,
ora o outro rio
de aquoso pano sujo
dos olhos de um cão.
 
Aquele rio
era como um cão sem plumas.
Nada sabia da chuva azul,
da fonte cor-de-rosa,
da água do copo de água,
da água de cântaro,
dos peixes de água,
da brisa na água.
 
Sabia dos caranguejos
De lodo e ferrugem.
Sabia da lama
como de uma mucosa.
Devia saber dos polvos.
Sabia seguramente
da mulher febril que habita as ostras.
 
Aquele rio
jamais se abre aos peixes,
ao brilho,
à inquietação de faca
que há nos peixes.
Jamais se abrem em peixes.
 
 Abre-se em flores
pobres e negras
como negros.
Abre-se numa flora
suja e mais mendiga
como são os mendigos negros.
Abre-se em mangues
de folhas duras e crespos
como um negro.
 
Liso como o ventre
de uma cadela fecunda,
o rio cresce
sem nunca explodir.
Tem, o rio,
um parto fluente e invertebrado
como o de uma cadela.
 
E jamais o vi ferver
(como ferve
o pão que fermenta).
Em silêncio,
o rio carrega sua fecundidade pobre,
grávido de terra negra.
 
Em silêncio se dá:
em capas de terra negra,
em botinas ou luvas de terra negra
para o pé ou a mão
que mergulha.
 
Como às vezes
passa com os cães,
parecia o rio estagnar-se.
Suas águas fluíam então
mais densas e mornas;        
fluíam com as ondas
densas e mornas
de uma cobra.
Ele tinha algo, então,
da estagnação de um louco.
Algo da estagnação
do hospital, da penitenciária, dos asilos,
da vida suja e abafada
(de roupa suja e abafada)
por onde se veio arrastando.
 
 Algo da estagnação
 dos palácios cariados,
 comidos
de mofo e erva-de-passarinho.
Algo da estagnação
das árvores obesas
pingando os mil açúcares
das salas de jantar pernambucanas,
por onde se veio arrastando.
 
 (É nelas,
 mas de costas para o rio,
 que "as grandes famílias espirituais" da cidade
 chocam os ovos gordos
 de sua prosa.
 Na paz redonda das cozinhas,
 ei-las a revolver viciosamente
 seus caldeirões
 de preguiça viscosa).
 
Seria a água daquele rio
fruta de alguma árvore?
Por que parecia aquela
uma água madura?
Por que sobre ela, sempre,
como que iam pousar moscas?
 
Aquele rio
saltou alegre em alguma parte?
Foi canção ou fonte
Em alguma parte?
Por que então seus olhos
vinham pintados de azul
nos mapas?


João Cabral de Melo Neto, in “O Cão Sem Plumas”.

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