domingo, 10 de fevereiro de 2019

AUGUSTO ABELAIRA - Quem era na verdade, Fernando Pessoa? (IV)


                              AUGUSTO ABELAIRA
(Coimbra, Portugal, 1926 - Lisboa, 2003)
                  Dramaturgo, tradutor, jornalista     

***

QUEM ERA NA VERDADE, FERNANDO PESSOA? (IV)

Brincadeira, mistificação, jonglerie. É evidente que Pessoa, a partir do momento em que descobriu a gratuitidade de seus raciocínios, não se podia levar mais a sério. Daí aquela muito especial ironia que tanto o caracteriza. Uma ironia sabendo muito a angústia, porque resultando do espírito de um homem que de nada tem a certeza, que duvida da possibilidade de a vir a encontrar, que acaba mesmo por desistir de a encontrar. Se é impossível atingir a verdade, porque não brincar, não raciocinar gratuitamente, não demonstrar o absurdo?

Mais: à custa de tanto se ter embrulhado para dentro de si próprio (e porque nunca tem a certeza de estar a ser sincero), acaba por não mais se conhecer. Isto é: Pessoa surpreende-se muitas vezes pensando isto ou aquilo. E naturalmente escreve isto ou aquilo que sente. Foi sincero pensando, escrevendo o que sentia. 

Mas quem lhe garante que ele sentia de facto carnalmente aquilo e não que estava perante uma aparência de sentir? «No fundo, um curioso conflito entre as partes superficiais e estéticas do meu ser de alma e outras partes religiosas e profundas dele».

Para todo este problema – sobretudo alcançando o grau de tragédia que em Pessoa alcançou – havia duas soluções: ou suicídio ou a gargalhada. Antes de ser suicida, Pessoa preferiu rir-se. (É a altura em que o problema se vai tornando cada vez mais agudo, mais sentido, e que Álvaro de Campos adquire a predominância).

«Da Verdade não quero
Mais que a vida; que os deuses
Dão vida e não e não verdade, nem talvez
Saibam a verdade.»

(continua)





in “Mundo Literário” – Semanário de Crítica e Informação Literária, Científica e Artística – 1947

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