quinta-feira, 31 de julho de 2014

AMO-TE

 
 
 
 
 
                       Amo-te
 
 
Amo-te quando em largo, alto e profundo
Minh´alma alcança, quando, transportada,
Sente, alongando os olhos deste mundo,
Os fins do Ser, a Graça entressonhada.
 
Amo-te, em cada dia, hora e segundo:
À luz do sol, na noite sossegada.
E é tão pura a paixão de que me inundo
Quanto o pudor dos que não pedem nada.
 
Amo-te com o doer das velhas penas;
Com sorrisos, com lágrimas de prece,
E a fé da minha infância, ingênua e forte.
 
Amo-te até nas coisas mais pequenas.
Por toda a vida. E, assim Deus o quisesse,
Ainda mais te amarei depois da morte.
 
 
 
Elizabeth Browning (1806-1861) poetisa inglesa.
Tradução: Manuel Bandeira
Imagem: pintura de Leonardo da Vinci.
 
 

quarta-feira, 30 de julho de 2014

RETRATO DE MULHER TRISTE

 
 



         
     Retrato de Mulher Triste

 
Vestiu-se para um baile que não há.
Sentou-se com suas últimas jóias.
E olha para o lado, imóvel.

Está vendo os salões que se acabaram,
embala-se em valsas que não dançou,
levemente sorri para um homem.
O homem que não existiu.

Se alguém lhe disser que sonha,
levantará com desdém o arco das sobrancelhas,
Pois jamais se viveu com tanta plenitude.

Mas para falar de sua vida
tem de abaixar as quase infantis pestanas,
e esperar que se apaguem duas infinitas lágrimas

 

Cecília Meireles, poetisa brasileira, in “Poemas”.
 
Imagem: Jean Metzinger (1883-1956) nascido em França.

 

 

 

terça-feira, 29 de julho de 2014

A MANHÃ FRESCA ESTÁ, SERENO O VENTO

 
 




A Manhã fresca está, sereno o vento

 
A Manhã fresca está, sereno o vento,
O monte verde, o rio transparente,
O bosque ameno; e o prado florescente
Fragâncias exalando cento a cento.

O Peixe, a Ave, o Bruto, o branco Armento,
Tudo se alegra; e até sair a gente
Dos rústicos casais se vê contente,
E discorrer com vário movimento.

Este cava, outro ceifa e aquele o gado
Traz no campo a pastar de posto em posto;
Outro pega na fouce, outro no arado.

Tudo alegre se mostra: e só disposto
Tem contra mim o indispensável fado,
Que em nada encontre alívio, em nada gosto.


 

Abade de Jazente (1719-1789) poeta português.

Imagem: quadro do pintor inglês John Constable (1776-1837)

 

segunda-feira, 28 de julho de 2014

A DEFESA DO POETA

 
 
 
 

     
       A Defesa do Poeta



Senhores jurados sou um poeta
um multipétalo uivo um defeito
e ando com uma camisa de vento
ao contrário do esqueleto

Sou um vestíbulo do impossível um lápis
de armazenado espanto e por fim
com a paciência dos versos
espero viver dentro de mim



Sou em código o azul de todos
(curtido couro de cicatrizes)
uma avaria cantante
na maquineta dos felizes

Senhores banqueiros sois a cidade
o vosso enfarte serei
não há cidade sem o parque
do sono que vos roubei

Senhores professores que pusestes
a prémio minha rara edição
de raptar-me em criança que salvo
do incêndio da vossa lição

Senhores tiranos que do baralho
de em pó volverdes sois os reis
sou um poeta jogo-me aos dados
ganho as paisagens que não vereis
 
Senhores heróis até aos dentes
puro exercício de ninguém
minha cobardia é esperar-vos
umas estrofes mais além
 
Senhores três quatro cinco e Sete
que medo vos pôs por ordem?
que pavor fechou o leque
da vossa diferença enquanto homem?
 
Senhores juízes que não molhais
a pena na tinta da natureza
não apedrejeis meu pássaro
sem que ele cante minha defesa
 
Sou uma impudência a mesa posta
de um verso onde o possa escrever
ó subalimentados do sonho!
a poesia é para comer.
 
 
Natália Correia, in “Poesia Completa”.
Imagem: Parque dos Poetas, Oeiras, Portugal.
 

domingo, 27 de julho de 2014

ALMADA NEGREIROS

 
 

 
Almada Negreiros (1893-1970) nasceu em São Tomé e Príncipe.

Foi pintor, escritor, poeta, dramaturgo e romancista, sendo conhecido como “Mestre Almada”.

Colaborou em várias revistas literárias. Escreveu e ilustrou o jornal manuscrito “Parva".

Integrou o grupo "Orpheu", no qual conviveu com Fernando Pessoa. Ficou célebre o seu “Manifesto Anti Dantas e por Extenso”.

Fez várias conferências, sendo a maioria publicada em revistas e jornais.
 
Realizou, vestido de operário, a conferência “Ultimatum Futurista às Gerações Portuguesas do Século XX”.

Concebeu a coreografia dos bailados "A Princesa dos Sapatos de Ferro" e "O Jardim da Pierrette". No primeiro também dançou. Foi actor no filme “O Condenado”. Realizou o bailado “O Sonho da Rosa”.

 
Participou em diversas exposições de arte, designadamente na “1ª Exposição dos Humoristas Portugueses”, considerada a pioneira do modernismo português; na "6ª Exposição de Arte Moderna" e na "Exposição Artistas Portugueses" apresentada no Rio de Janeiro, no Brasil.

Na sua faceta de artista plástico, destacam-se os seguintes trabalhos: frescos da Gare Marítima de Alcântara e da Gare Marítima da Rocha do Conde de Óbidos; dois painéis para a Brasileira do Chiado; o painel “Começar” no átrio da Fundação Calouste Gulbenkian, etc.
 
Uma das suas obras mais conhecidas é o célebre retrato de Fernando Pessoa sentado à mesa do restaurante “Irmãos Unidos”. Sobre a mesa está o exemplar nº 2 do “Orpheu”. Desde 1993, esta obra encontra-se em exposição na Casa Fernando Pessoa, em Lisboa.
 
Como pintor integrado no movimento cubista, desenvolveu a sua actividade criativa na tapeçaria e na decoração.
Como escritor publicou, entre outros, os livros: Antes de Começar, Deseja-se Mulher, A Engomadeira, Meninos de Olhos de Gigante. Durante a sua estadia em Paris escreveu “Histoire du Portugal par Coeur”.
Almada Negreiros foi um dos grandes nomes da cultura portuguesa do século XX.
 
 Palavras de Almada Negreiros:
“As pessoas que eu mais admiro são aquelas que nunca acabam.”

 
                           
                                 Confidências
 
Mãe! Vem ouvir a minha cabeça a contar histórias ricas que ainda não viajei!
Traz tinta encarnada para escrever estas coisas!
Tinta cor de sangue verdadeiro, encarnado!
Eu ainda não fiz viagens
E a minha cabeça não se lembra senão de viagens!
Eu vou viajar.
Tenho sede! Eu prometo saber viajar.
Quando voltar é para subir os degraus da tua casa, um por um.
Eu vou aprender de cor os degraus da nossa casa.
Depois venho sentar-me a teu lado.
Tu a coseres e eu a contar-te as minhas viagens, aquelas que eu viajei, tão parecidas com as que não viajei, escritas ambas com as mesmas palavras.
Mãe! Ata as tuas mãos às minhas e dá um nó-cego muito apertado!
Eu quero ser qualquer coisa da nossa casa.
Eu também quero ter um feitio, um feitio que sirva exactamente para a nossa casa, como a mesa. Como a mesa.
Mãe! Passa a tua mão pela minha cabeça!
Quando passas a tua mão na minha cabeça é tudo tão verdade!
 
Almada Negreiros
 

 


sábado, 26 de julho de 2014

O FUTURO PERFEITO

 
 



O Futuro Perfeito

À minha neta Anica

A neta explora-me os dentes,
Penteia-me como quem carda.
Terra da sua experiência,
Meu rosto diverte-a, parda
Imagem dada à inocência.

Finjo que lhe como os dedos,
Fura-me os olhos cansados,
Intima aos meus próprios medos
Deixa-mos sossegados.

E tira, tira puxando
Coisas de mim, divertida.
Assim me vai transformando
Em tempo da sua vida.

 

Vitorino Nemésio, poeta e escritor português, in “O Verbo e a Morte”

Imagem: quadro do pintor suiço Albert Anker (1831-1910).                                              

sexta-feira, 25 de julho de 2014

PAULO LEMINSKI

 
 
 
 

Paulo Leminski (1944-1989) nasceu em Curitiba, Brasil.

Escritor, poeta, professor, tradutor e crítico literário, a sua influência foi determinante  na evolução da poesia brasileira.

Adquiriu conhecimentos de latim, filosofia, literatura clássica e teologia. 

Estudou a língua japonesa.

Algumas das suas obras: Não fosse isso e era menos/ não fosse tanto e era quase, Caprichos e Relaxes, Distraídos Venceremos, Aviso aos Náufragos, Catatau, Agora é que são Elas.

Publicou, também, quatro biografias: Cruz e Souza, Matsuó Bashô, Jesus, Trotski.

Paulo Leminski esteve ligado à música, escrevendo letras para inúmeras canções.

 


Palavras de Paulo Leminski:

“Repara bem no que não digo.”

 

    
     Três Metades

 

Meio dia,
um dia e meio,
meio dia, meio noite,
metade deste poema
não sai na fotografia,
metade, metade foi-se.

Mas eis que a terça metade,
aquela que é menos dose
de matemática verdade
do que soco, tiro, ou coice,
vai e vem como coisa
de ou, de nem, ou de quase.

Como se a gente tivesse
metades que não combinam,
três partes, destempestades,
três vezes ou vezes três,
como se quase, existindo,
só nos faltasse o talvez.

 

Paulo Leminski

 


quinta-feira, 24 de julho de 2014

TAMBÉM TU CANTARIAS

 
 
 


 Também tu cantarias
 
 
Também tu cantarias
se desses por ti
num lugar como este.
Não te preocuparias
se serias tão bom como
o Ray Charles ou a Edith Piaf.
Cantarias
cantarias
não para ti
mas para criar um eu
a partir do velho alimento
que apodrece na entranha astral
e na pancada surda, sem amor,
da tua própria respiração.
Tornar-te-ias uma cantora
mais depressa do que o tempo necessário
até odiarmos o encanto de um rival
e cantarias, querida
também tu cantarias.
 

Leonard Cohen, in “Livro do Desejo”
Tradução: Vasco Gato
Imagem: quadro do pintor austríaco Hans Zatzka (1859-1945)

quarta-feira, 23 de julho de 2014

PAPOULAS DE JULHO

 
 
 
 

 
                Papoulas de Julho

 
Ó papoulinhas pequenas flamas do inferno,
Então não fazem mal?
Vocês vibram. É impossível tocá-las.
Eu ponho as mãos  entre as flamas. Nada me queima.
E me fatiga ficar a olhá-las
Assim vibrantes, enrugadas e rubras, como a pele de uma boca.

Uma boca sangrando.
Pequenas franjas sangrentas!
Há vapores que não posso tocar.
Onde estão os narcóticos, as repugnantes cápsulas?

Se eu pudesse sangrar, ou dormir !
Se minha boca pudesse unir-se a tal ferida !
Ou que seus licores filtrem-se em mim, nessa cápsula de vidro,
Entorpecendo e apaziguando.
Mas sem cor. Sem cor alguma.

 

Sylvia Plath (1932-1963) poetisa norte-americana.
Tradução: Afonso Félix de Souza

terça-feira, 22 de julho de 2014

OS BANQUEIROS

 



Os banqueiros da grande bancaria do mundo, que praticam o terrorismo do dinheiro, podem mais que os reis e os marechais e mais que o próprio Papa de Roma. Eles jamais sujam as mãos. Não matam ninguém: se limitam a aplaudir o espetáculo.

Seus funcionários, os tecnocratas internacionais, mandam em nossos países: eles não são presidentes, nem ministros, nem foram eleitos em nenhuma eleição, mas decidem o nível dos salários e do gasto público, os investimentos e desinvestimentos, os preços, os impostos, os lucros, os subsídios, a hora do nascer do sol e a frequência das chuvas.

Não cuidam, em troca, dos cárceres, nem das câmaras de tormento, nem dos campos de concentração, nem dos centros de extermínio, embora nesses lugares ocorram as inevitáveis consequências de seus atos.

Os tecnocratas reivindicam o privilégio da irresponsabilidade:


— Somos neutros — dizem.

 

Eduardo Galeano, escritor uruguaio, in “Livro dos Abraços”,(Profissões/3)
Imagem: pintura de Rembrandt

segunda-feira, 21 de julho de 2014

NESTA ÚLTIMA TARDE EM QUE RESPIRO

 
 
 
 

Nesta última tarde em que respiro

 

Nesta última tarde em que respiro
A justa luz que nasce das palavras
E no largo horizonte se dissipa
Quantos segredos únicos, precisos,
E que altiva promessa fica ardendo
Na ausência interminável do teu rosto.
Pois não posso dizer sequer que te amei nunca
Senão em cada gesto e pensamento
E dentro destes vagos vãos poemas;
E já todos me ensinam em linguagem simples
Que somos mera fábula, obscuramente
Inventada na rima de um qualquer
Cantor sem voz batendo no teclado;
Desta falta de tempo, sorte, e jeito,
Se faz noutro futuro o nosso encontro.




António Franco Alexandre, in “Uma Fábula”
Imagem: pintura do norte-americano Jim Warren

domingo, 20 de julho de 2014

A HIPOCRISIA DO AMOR AO POVO

 
 
 
 

 
                     A hipocrisia do amor ao povo

 

Estes amam o povo, mas não desejariam, por interesse do próprio amor, que saísse do passo em que se encontra; deleitam-se com a ingenuidade da arte popular, com o imperfeito pensamento, as superstições e as lendas; vêem-se generosos e sensíveis quando se debruçam sobre a classe inferior e traduzem, na linguagem adamada, o que dela julgam perceber; é muito interessante o animal que examinam, mas que não tente o animal libertar-se da sua condição; estragaria todo o quadro, toda a equilibrada posição; em nome da estética e de tudo o resto convém que se mantenha.

 
Há também os que adoram o povo e combatem por ele mas pouco mais o julgam do que um meio; a meta a atingir é o domínio do mesmo povo por que parecem sacrificar-se; bate-lhes no peito um coração de altos senhores; se vieram parar a este lado da batalha foi porque os acidentes os repeliram das trincheiras opostas ou aqui viram maneira mais segura de satisfazer o vão desejo de mandar; nestes não encontraremos a frase preciosa, a afectada sensibilidade, o retoque literário; preferem o estilo de barricada; mas, como nos outros, é o som do oco tambor retórico o último que se ouve.

 
Só um grupo reduzido defende o povo e o deseja elevar sem ter por ele nenhuma espécie de paixão; em primeiro lugar, porque logo reprimiriam dentro em si todo o movimento que percebesse nascido de impulsos sentimentais; em segundo lugar, porque tal atitude os impediria de ver as soluções claras e justas que acima de tudo procuram alcançar; e, finalmente, porque lhes é impossível permanecer em êxtase diante do que é culturalmente pobre, artisticamente grosseiro, eivado dos muitos defeitos que trazem consigo a dependência e a miséria em que sempre o têm colocado os que mais o cantam, o admiram e o protegem.

 
Interessa-nos o povo porque nele se apresenta um feixe de problemas que solicitam a inteligência e a vontade; um problema de justiça económica, um problema de justiça política, um problema de equilíbrio social, um problema de ascensão à cultura, e de ascensão o mais rápida possível da massa enorme até hoje tão abandonada e desprezada; logo que eles se resolvam terminarão cuidados e interesses; como se apaga o cálculo que serviu para revelar um valor; temos por ideal construir e firmar o reino do bem; se houve benefício para o povo, só veio por acréscimo; não é essa, de modo algum, a nossa última tenção.

 

 

Agostinho da Silva, filósofo, poeta e ensaísta português, in ”Considerações”.

 
 

 


MALMEQUER

MALMEQUER Português, ó malmequer Em que terra foste semeado? Português, ó malmequer Cada vez andas mais desfolhado Ma...