domingo, 30 de novembro de 2014

Levanta-se ao amanhecer como os padeiros

 
 
 
 
 

 
Levanta-se ao amanhecer como os padeiros

 
A minha amada possui a cintura esbelta e firme.
Já estive num avião e de cima ela parece mais pequena
mas ainda que eu fosse piloto assim me agradaria.

Ela própria lava a roupa, a espuma sonha e treme nos seus braços,
ajoelha-se como se rezasse, esfrega o chão
e, ao acabar, ri alegremente.
O seu riso é uma maçã cuja casca morde com estrépito
e também a maçã ri, então, às gargalhadas.
Quando amassa o pão levanta-se ao amanhecer
como os padeiros, parentes dos fornos de pão suave
que vigiam com as suas longas pás.
A farinha, ao derramar-se, voa até aos seus peitos livres
onde fica a dormir tranquilamente,
tal como a minha amada no leito perfumado,
depois de esfregar
e de abraçar, até limpar completamente, o meu coração.

A minha esposa será como ela se eu crescer e amadurecer como um homem
e casar-me-ei como o meu pai.

 
 

Imagem: quadro do pintor expressionista Edvard Munch (Noruega,1863-1944).

 
 

sábado, 29 de novembro de 2014

Alberto Pimenta

 
 
 
 

Alberto Pimenta (Porto, 1937) é escritor, poeta, dramaturgo, ensaísta, tradutor e professor. Destaca-se pelo carácter crítico e irreverente da sua obra.

A sua actividade no domínio da criação literária está relacionada com os movimentos experimentalistas.

Esteve exilado por oposição política ao regime do Estado Novo, regressando a Portugal em 1977.

Para marcar simbolicamente o conteúdo insurrecto da sua obra, protagonizou alguns eventos insólitos, tais como: queimou, publicamente, o seu ensaio O Silêncio dos Poetas, um importante estudo sobre o sentido da criação literária ligada aos movimentos de vanguarda; encerrou-se numa jaula do Jardim Zoológico de Lisboa; expôs-se para venda à porta da Igreja dos Mártires, entre outros acontecimentos.

Algumas das suas obras: O Silêncio dos Poetas, obra quase incompleta, Ainda há muito para fazer, Tomai, isto é o meu porco, Discurso sobre o filho-da-puta, O Desencantador, Homo sapiens.

 

 
 
Palavras de Alberto Pimenta:

«Era uma belíssima ideia juntar, fazer dos jardins das maternidades os cemitérios. Apanhava a vida em seu sentido total, não é mesmo? Os cemitérios são uns dos lugares mais agradáveis neste país para passear. São os únicos lugares limpos, são muito sossegados, são serenos.

Não tem aquela coisa que a outros portugueses incomoda tanto que é os namorados a beijarem-se. Isso é uma coisa que incomoda a muitos portugueses que é o afecto. O beijo, principalmente, se for intenso.»

 

 
Ontem o pregador de verdades dele

 
Ontem o pregador de verdades dele
Falou outra vez comigo.
Falou do sofrimento das classes que trabalham
(Não do das pessoas que sofrem, que é afinal quem sofre).
Falou da injustiça de uns terem dinheiro,
E de outros terem fome, que não sei se é fome de comer,
Ou se é só fome da sobremesa alheia.
Falou de tudo quanto pudesse fazê-lo zangar-se.

Que feliz deve ser quem pode pensar na infelicidade dos outros!
Que estúpido se não sabe que a infelicidade dos outros é deles.
E não se cura de fora,
Porque sofrer não é ter falta de tinta
Ou o caixote não ter aros de ferro!

Haver injustiça é como haver morte.
Eu nunca daria um passo para alterar
Aquilo a que chamam a injustiça do mundo.
Mil passos que desse para isso
Eram só mil passos.
Aceito a injustiça como aceito uma pedra não ser redonda,
E um sobreiro não ter nascido pinheiro ou carvalho.

Cortei a laranja em duas, e as duas partes não podiam ficar iguais.
Para qual fui injusto – eu, que as vou comer a ambas?

 

Alberto Pimenta

 

sexta-feira, 28 de novembro de 2014

Balada do soldado conhecido

 
 
 
 
 
 
 
Balada do soldado conhecido
 
 
 
É o soldado conhecido.
Era muito conhecido.
Conheciam-no muito bem
os que o haviam perdido.
O que significam
todos os monumentos
ao soldado
desconhecido.
Era muito conhecido.
Todos
eram muitos conhecidos.
Deixai de enviar-lhe flores
vós
que o destruístes.
Vós o convertestes
em soldado e em desconhecido.
É o soldado conhecido!
 
 
 
Jesús Lizano (Barcelona, Espanha, 1931) é filosófo, poeta e pensador libertário.
Imagem: pintura de Helene Schjerfbeck (Finlândia, 1862-1946).

quinta-feira, 27 de novembro de 2014

Virgílio

 
 
 
 

Virgílio (Andes, Itália, 70 a.C. – Brindisi, Itália, 19 a.C.).
Poeta romano clássico, estudou em Cremona, Milão e Roma.
Foi o autor de três grandes obras da literatura latina: Geórgicas, Eneida e Éclogas.
 
Dedicou dez anos da sua vida a escrever Eneida. Quis que a obra fosse queimada, mas não foi cumprida a sua vontade.
 
A poesia de Virgílio abrange diversos temas, tais como: o amor à vida rural, a religião, a clemência, a valorização dos laços familiares, o patriotismo.
 

Palavras de Virgílio:

"Enquanto os rios correrem para o mar, os montes fizerem sombra aos vales e as estrelas fulgirem no firmamento, deve durar a recordação do benefício recebido na mente do homem reconhecido."
 
 

Excerto de Eneida:

A juventude, persistente no trabalho e afeita a pouco,
ou domina a terra com o arado, ou abala as florestas com a guerra.
Toda a vida se passa com o ferro, e com as lanças invertidas,
fatigamos o lombo dos novilhos; a lenta velhice
não os debilita a força de ânimo nem nos altera o vigor.
As nossas cãs cobre-as ainda o capacete e sempre nos apraz
trazer presas novas e viver do saque.
 
Virgílio

 
 

 


quarta-feira, 26 de novembro de 2014

Para a minha mãe

 
 
 
 
 
 
               Para a minha mãe
 
        (reivindicação da beleza)


Ouve, à noite, como a seda se rasga
e a taça de chá cai ao chão, sem ruído,
como por magia,
tu que só tens palavras doces para os mortos
e levas um ramo de flores na mão
à espera da morte
que cai do seu corcel, ferida por um cavaleiro
que a prende com os seus lábios brilhantes
e chora pelas noites pensando que o amavas,
e diz: vem para o jardim, vê como as estrelas caem
e falemos em sossego para que ninguém nos ouça
vem, escuta-me , falemos de nossos móveis
tenho uma rosa tatuada na face e um bastão
com um punho em forma de pato
e dizem que chove por nós e que a neve é nossa
e agora que o poema expira,
como uma criança, te digo :
vem, eu fiz um diadema

(sai ao jardim e verás como a noite nos envolve)


Leopoldo María Panero (Madrid, Espanha, 1948 – Las Palmas, Espanha, 2014).

Tradução: Luís Costa

Imagem: pintura de Nikolai Rerich ( São Petersburgo, Leningrado, Rússia, 1874 – Punjab, Índia, 1947).

terça-feira, 25 de novembro de 2014

Quando ouço ao telefone a voz que brinca

 
 
 
 
 
 

Quando ouço ao telefone a voz que brinca


Quando ouço ao telefone a voz que brinca
e canta, sem saber, os dias novos,
pouco me importam tempo, espaço, luas,
ou maneiras sequer de ser humano.
Vagueio pelo ar, e arranco estrelas
ao cenário sem fim do universo;
e faço pobres contas aos cabelos
depenados no chão, verso após verso.
Nada é real, senão o meu desejo,
nem sei de lei nenhuma que não dobre
a dura mansidão da tua boca;
inventou-nos um deus, para que seja
veloz o lume na manhã sem nome,
e chama viva a voz que nos consome. 

 

António Franco Alexandre, in Duende”

Imagem: óleo de Craig Mullins.


segunda-feira, 24 de novembro de 2014

Paul Verlaine

 
 
 
 
 

 

Paul Verlaine (Metz, França, 1844 – Paris, França, 1896).

Considerado um “poeta maldito” foi o grande precursor do simbolismo, cujas características principais são a importância da musicalidade, o gosto pelo preciosismo das palavras, a enfase em temas místicos, imaginários e subjectivos.

Em 1866, publicou o seu primeiro livro de poesia, Poemas Saturninos.

Vinte anos depois, publicou Os Poetas Malditos, uma obra controversa, composta por biografias de poetas, contos e versos sagrados e profanos.

Juntamente com os poetas Stéphane Mallarmé e Charles Baudelaire, formou o grupo dos chamados "Decadentes".

Poucos dias antes de falecer, publicou o seu último poema, Morte.

Na fase final da sua dramática vida, Paul Verlaine foi eleito “Príncipe dos Poetas franceses”.
 
 
 

Palavras de Paul Verlaine:

"A independência foi sempre o meu desejo, a dependência foi sempre o meu destino."Em 1895, quando ele estava morrendo, Verlaine foi eleito "Príncipe dos Poetas" ("Príncipe dos Poetas") pelo mundo literário francês. A few days before his death, he published his last poem, “Mort” (“Death”). Poucos dias antes de sua morte, ele publicou seu último poema, "Mort" ("Death"). On 8 January 1896 he died of pulmonary congestion. Em 08 de janeiro de 1896, ele morreu de congestão pulmonar. Three thousand people attended his funeral two days later. Três mil pessoas compareceram ao seu funeral, dois dias depois.

 

A Angústia

Nada em ti me comove, Natureza, nem
Faustos das madrugadas, nem campos fecundos,
Nem pastorais do Sul, com o seu eco tão rubro,
A solene dolência dos poentes, além.

Eu rio-me da Arte, do Homem, das canções,
Da poesia, dos templos e das espirais
Lançadas para o céu vazio plas catedrais.
Vejo com os mesmos olhos os maus e os bons.

Não creio em Deus, abjuro e renego qualquer
Pensamento, e nem posso ouvir sequer falar
Dessa velha ironia a que chamam Amor.

Já farta de existir, com medo de morrer,
Como um brigue perdido entre as ondas do mar,
A minha alma persegue um naufrágio maior.

Paul Verlaine, in "Melancolia"
Tradução: Fernando Pinto do Amaral

domingo, 23 de novembro de 2014

Mário Beirão

 
 




Mário Beirão (Beja, Portugal, 1890 – Lisboa, Portugal, 1965).
Poeta inserido na corrente literária e filosófica do saudosismo, publicou o seu primeiro livro intitulado: O Último Lusíada.

Foi um dos colaboradores da revista “A Águia”.

Algumas das suas obras: Ausente, Lusitânia, A Noite Humana, Pão da Ceia.
O tema dominante da sua obra é o Alentejo, com as suas paisagens e as suas gentes.

Hernâni Cidade, crítico literário e historiador, considerou Mário Beirão como “o maior de todos depois de Pascoaes, o grande revelador da alma nostálgica.”

 

                 Enlevo

 

Porque esse olhar de sombra de temor
Se perde em mim, às horas do sol posto,
Quando é de âmbar translúcido o teu rosto,
E a tua alma desmaia como flor;

Porque essas mãos, ardidas de fervor,
Ampararam minha vida de desgosto,
Pobre que sou, Mulher, eu hei composto
Harmonias de prece em teu louvor!

Dei-te a minha alma para ti nascida,
Meus versos que são mais que a minha vida;
Por Deus, perdoa ao mísero mendigo!

Perdoa a quem, ansioso de outro mundo,
Implora à Morte o sono mais profundo,
Só pela graça de sonhar contigo!

 

Mário Beirão, in “366 Poemas que falam de amor”, antologia organizada por Vasco Graça Moura.


 

sábado, 22 de novembro de 2014

O poema são fogueiras levantadas na garganta

 
 
 
 
 
 

O poema são fogueiras levantadas na garganta

                                                       

O poema são fogueiras levantadas na garganta
ou um sono inclinado sobre as facas.

Alguém diz, a prumo
todos os nomes queimam,
e há uma deflagração assombrosa,

a palavra acende-se
com uma árvore de sangue ao centro.

 

 

Jorge Melícias, (Coimbra, Portugal, 1970) in “A Luz nos Pulmões”.

Imagem: fotografia de Muquixi

 

sexta-feira, 21 de novembro de 2014

Verdes Aparências

 
 
 
 
 

 
 
  Verdes Aparências

 

 
Eram de barro os cântaros

que acolheram os licores da carne.

Era de algodão cru o tecido do lençol

que acobertava

um falso rei e uma rainha falsa.

 

Sob as rosas mornas

onde os cacos se devoravam

e a pressa dos suicidas

apregoava encantamento,

os cântaros vertiam

beijos de proveta

sobre a fenda pretendida.

 

Avolumavam-se outras fomes

e o ritmo da porfia

consagrava-se.

 

E ao som do tilintar dos dentes

nas bordas da taça de cristal,

voavam estilhaços de vinho

e uma nódoa de veneno

sobre a mesa esparramava-se.

 

Era um tempo de carnes secas

e verdes aparências.

 

Maria Luísa Ribeiro (Goiânia, Brasil)

Imagem: pintura de Wilson Braga (Brasil)


 
 
 

 

 

 

 
 

quinta-feira, 20 de novembro de 2014

Langston Hughes

 
 
 
 
 
 

 


Langston Hughes (Missouri, EUA,1902 – Nova Iorque, EUA, 1967), importante figura literária na década de 1920, período conhecido como “Renascimento do Harlem”. Foi um dos criadores do jazz poesia.


 
     Negro
 
Sou um Negro:
Escuro como a noite,
Escuro como as profundezas da minha África.

Tenho sido um escravo:
César mandou-me limpar os degraus da sua porta.
Escovei as botas de George Washington.

Tenho sido um trabalhador:
Sob as minhas mãos ergueram-se as pirâmides.
Fiz argamassa para o Woolworth Building.

Tenho sido um cantor:
Entre África e a Geórgia
Carreguei as minhas canções de lamento.
Fiz “ragtime”.

Tenho sido uma vítima:
Os belgas cortam-me as mãos no Congo.
Continuam a linchar-me no Mississípi.

Sou um Negro:
Escuro como a noite,
Escuro como as profundezas da minha África.

 
 
Langston Hughes

 

quarta-feira, 19 de novembro de 2014

O Humor existe em toda a parte

 
 
 
 
 
 

       O Humor existe em toda a parte
 
O humor existe em toda a parte. Só falta saber se ele toma formas típicas, particulares de um povo, de uma nação ou de um grupo religioso, profissional ou outro: os humores inglês, alemão, americano, judaico, latina, etc.

Mas não: o humor é universal, e essa é bem uma das suas grandes qualidades. É certo que o dito de humor se insere inevitavelmente em estruturas e culturas concretas, mas pode ser apreciado por todos porque vai sempre além do terreno que lhe deu nascimento.

Na internacional do humor, os humoristas de todos os países estão unidos e animados por um mesmo espírito. O humor é um sexto sentido que não tem menor utilidade que os outros.

Há os que estão dotados desse sentido e há os que o não estão – esta imperfeição priva-os de um ponto de vista essencial sobre o mundo: vêem-no, ouvem-no, tocam-lhe, saboreiam-no e cheiram-no, mas não se apercebem de que ele existe.

Digamos, de uma forma menos provocatória, que mergulham totalmente neste mundo, material ou espiritual, real ou imaginário, e são incapazes de tomar distância, de separar-se, de ser livres; acorrentam-se à sua representação do mundo sem ver que ela é apenas uma representação; desempenham o seu papel com tal convicção que não vêem que é só um papel. Bem se lhes pode repetir, com Shakespeare, que

 
… todo o mundo é um palco,
os homens e as mulheres, simples actores;
fazem as suas entradas e as suas saídas
e cada um na sua vida desempenha muitos papéis,

mas nada feito: levam o papel a sério.

 

Georges Minois, in "História do Riso e do Escárnio"

Imagem: Flora Borsi


terça-feira, 18 de novembro de 2014

O patriota: uma velha história

 
 
 
 
 
 
 
 

                            O patriota: uma velha história   



Rosas, rosas, por todos os lados, rosas
No meu caminho murtas, muitas murtas:
Do casario os telhados levantar-se e balançar pareciam.
Das igrejas as torres flamejavam, tantas as bandeiras tremulando.
Completa um ano essa celebração.


Nevoento o ar aos sinos se fundia,
Com a multidão as velhas paredes se abalaram.
Dissesse eu: “Boa gente, a quem um simples ruído não contenta -
O vosso sol dai-me além dos horizontes!”
Seguramente seria eu atendido. E depois, como seria?”

Pobre de mim! Caberia a mim ao sol me dirigir
A fim de aos meus amados amigos trazê-lo.
Se eu próprio não o fizesse, quem deles o faria?
Vede, agora, em mim os frutos que colhi
Hoje mesmo, após um ano.

Por cima do casario é só deserto
Salvo um pequeno grupo que se fez notado nas janelas.
Decerto está por vir o melhor da festa:
No Portão do Matadouro – ou antes, creio eu,
Junto aos pés do cadafalso.


Pela chuva caminho inutilmente
Rasga meus pulso uma corda.
Na dor sinto que também sangra minha fronte.
A bel-prazer pedras me arremessam por causa dos
Meus pecados daquele ano.

Assim, lá entrei. Assim se cumpriu!
Nas vitórias, me consagra, reverente, o povo.
“Pago fostes pelo mundo, o que Me deveis?”
Pergunta Deus. Não é bem assim.
A Deus cabe justo preço. Agora, me sinto mais seguro.


Robert Browning (Camberwell, Reino Unido, 1812 – Veneza, Itália, 1889)
Tradução: Cunha e Silva Filho
Imagem: fotografia de Norbert Piechula
 

 
 

MALMEQUER

MALMEQUER Português, ó malmequer Em que terra foste semeado? Português, ó malmequer Cada vez andas mais desfolhado Ma...