segunda-feira, 16 de dezembro de 2019

ALMADA NEGREIROS – Mãe



ALMADA NEGREIROS
(Trindade, São Tomé e Príncipe, 1893 - Lisboa, de 1970)
Artista plástico, poeta, romancista

***

Com Fernando Pessoa e Mário de Sá-Carneiro, formou o grupo da revista Orpheu.


***

MÃE!

      Mãe
      Vem ouvir a minha cabeça a contar histórias ricas que ainda não viajei!
Traze tinta encarnada para escrever estas coisas!
Tinta cor de sangue, sangue! verdadeiro, encarnado!
      Mãe! passa a tua mão pela minha cabeça!
      Eu ainda não fiz viagens e a minha cabeça não se lembra senão de viagens!
Eu vou viajar. Tenho sede! Eu prometo saber viajar.


      Quando voltar é para subir os degraus da tua casa, um por um.
Eu vou aprender de cor os degraus da nossa casa. Depois venho sentar-me ao teu lado.
Tu a coseres e eu a contar-te as minhas viagens, aquelas que eu viajei,
tão parecidas com as que não viajei, escritas ambas com as mesmas palavras.


     Mãe! ata as tuas mãos às minhas e dá um nó cego muito apertado!
Eu quero ser qualquer coisa da nossa casa. Como a mesa.
Eu também quero ter um feitio que sirva exactamente para a nossa casa, como a mesa.

      
     Mãe! passa a tua mão pela minha cabeça!
Quando passas a tua mão na minha cabeça é tudo tão verdade!


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