EUGÉNIO DE ANDRADE
(Fundão, Portugal, 1923 - Porto, 2005)
Poeta
***
EM
LOUVOR DAS CRIANÇAS
Se há na terra um
reino que nos seja familiar e ao mesmo tempo estranho, fechado nos seus limites
e simultaneamente sem fronteiras, esse reino é o da infância. A esse país
inocente, donde se é expulso sempre demasiado cedo, apenas se regressa em
momentos privilegiados — a tais regressos se chama, às vezes, poesia. Essa
espécie de terra mítica é habitada por seres de uma tão grande formosura que os
anjos tiveram neles o seu modelo, e foi às crianças, como todos sabem pelos
evangelhos, que foi prometido o Paraíso.
A sedução das crianças provém, antes de mais, da sua proximidade com os animais
— a sua relação com o mundo não é a da utilidade, mas a do prazer. Elas não
conhecem ainda os dois grandes inimigos da alma, que são, como disse
Saint-Exupéry, o dinheiro e a vaidade. Estas frágeis criaturas, as únicas desde
a origem destinadas à imortalidade, são também as mais vulneráveis — elas têm o
peito aberto às maravilhas do mundo, mas estão sem defesa para a bestialidade
humana que, apesar de tanta tecnologia de ponta, não diminui nem se extingue.
O sofrimento de uma criança é de uma ordem tão monstruosa que, frequentemente,
é usado como argumento para a negação da bondade divina. Não, não há salvação
para quem faça sofrer uma criança, que isto se grave indelevelmente nos vossos
espíritos. O simples facto de consentirmos que milhões e milhões de crianças
padeçam fome, e reguem com as suas lágrimas a terra onde terão ainda de lutar
um dia pela justiça e pela liberdade, prova bem que não somos filhos de Deus.
in
“Rosto Precário” (citador)
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