MÁRIO DE SÁ-CARNEIRO
(Lisboa, Portugal,
1890 — Paris, França, 1916)
Poeta, contista
***
RECORDAR É VIVER
a Th. Cabreira Júnior
A Quinta das Violetas é uma encantadora propriedade
situada numa ridente povoação, distante de Lisboa poucos quilómetros. Actualmente
pertence a um médico, distinto alienista que a aproveita apenas para nela
passar dois ou três meses, durante o verão.
Ora este ano, numa formosa manhã de Maio, o caseiro,
sentindo
bater ao portão, foi abri-lo e deparou com uma
senhora, idosa já, que lhe disse timidamente:
– «Se o senhor me deixasse entrar... Sabe, esta quinta
já foi minha... Gostava tanto de a ver...»
O caseiro, como era natural, satisfez -lhe o pedido. A
senhora idosa entrou.
Quarenta anos!... Sim, quarenta anos e no entanto
parecia que ainda tinha sido ontem...
Que venturosos dias não havia passado ali, nesse «paraíso»
onde agora entrava como uma estranha, ela, que já fora a dona de todas essas
árvores, de todas essas pedras!... Que felizes tempos!... Era então uma linda
rapariga de cabelos d’ouro a quem tudo sorria...
Uma atmosfera d’amor a rodeava... Amava tanto o seu
marido... tanto... e – oh! suprema ventura! – era também amada por ele com o
mesmo ardor!... À noite, ternamente enlaçados, percorriam as ruas orladas de
buxo que a Lua, lá do alto, iluminava com a sua pálida luz... Oh! quantas
vezes... quantas, debaixo do céu coberto de estrelas, se não haviam unido os
seus lábios num longo e ardente
beijo, cujo ruído o murmúrio das folhas sacudidas pela
brisa abafava discretamente...
Quarenta anos, sim, quarenta anos e no entanto parecia
que ainda tinha sido ontem!...
... Entrou. No pátio em que se encontrava, os seus pés
pousavam sobre os mesmos ladrilhos d’outrora e os seus olhos sobre as mesmas
paredes, sobre a mesma floreira de ferro, pintada com o mesmo verde. Só os
vasos e as plantas é que haviam mudado... Saiu do pátio. Tomou uma rua... aqui,
uma árvore a menos, ali um muro caiado de fresco... uma cancela nova... Nada
mais e haviam decorrido tantos anos... tantos...
Chegou ao fim da rua, onde existia uma mesa de pedra,
rodeada por um assento também de pedra... As doze badaladas do meio -dia ressoavam
lá ao longe, tangidas pelo pequeno sino da freguesia... E o som desse sino era
também o mesmo... o mesmo d’outrora...
O filho do caseiro veio chamar o seu pai para ir
jantar. A senhora idosa ficou só...
Ali... sim, fora ali, sentada naquele mesmo banco que,
num dia lindo de Maio, num dia em que o sol brilhava, radioso, iluminando um
céu azul d’anil, sem uma nuvem, que ouvira as primeiras palavras de amor, que
trocara o seu primeiro beijo...
As lágrimas começaram escorregando pelas suas
faces, vagarosamente... É que toda a sua vida – monstruosa fita cinematográfica
ora alegre, ora triste – ia passando por diante dos seus pobres olhos apagados:
primeiro a felicidade, depois a desgraça... a ruína de seu marido, a sua
partida para África... a sua morte... toda uma existência, enfim, da qual nada
restava... nada, a não ser, lá longe, debaixo das areias ardentes dum deserto
africano, um feixe de ossos calcinados e ali, ali, à sombra dum cedro
centenário, um outro feixe d’ossos coberto porém com um invólucro de pele
diáfana e ressequida...
As lágrimas eram cada vez mais amargas... mais
abundantes... O sol, o lindo sol de Maio, brilhava lá em cima, radioso,
iluminando
um céu d’anil, sem uma nuvem... sem uma única nuvem...
in “Primeiros Contos”
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