sexta-feira, 27 de dezembro de 2019

MÁRIO DE SÁ-CARNEIRO – Recordar é viver




MÁRIO DE SÁ-CARNEIRO
(Lisboa, Portugal, 1890 — Paris, França, 1916)
Poeta, contista
                                  
 ***

RECORDAR É VIVER
a Th. Cabreira Júnior


A Quinta das Violetas é uma encantadora propriedade situada numa ridente povoação, distante de Lisboa poucos quilómetros. Actualmente pertence a um médico, distinto alienista que a aproveita apenas para nela passar dois ou três meses, durante o verão.

Ora este ano, numa formosa manhã de Maio, o caseiro, sentindo
bater ao portão, foi abri-lo e deparou com uma senhora, idosa já, que lhe disse timidamente:

– «Se o senhor me deixasse entrar... Sabe, esta quinta já foi minha... Gostava tanto de a ver...»

O caseiro, como era natural, satisfez -lhe o pedido. A senhora idosa entrou.

Quarenta anos!... Sim, quarenta anos e no entanto parecia que ainda tinha sido ontem...

Que venturosos dias não havia passado ali, nesse «paraíso» onde agora entrava como uma estranha, ela, que já fora a dona de todas essas árvores, de todas essas pedras!... Que felizes tempos!... Era então uma linda rapariga de cabelos d’ouro a quem tudo sorria...

Uma atmosfera d’amor a rodeava... Amava tanto o seu marido... tanto... e – oh! suprema ventura! – era também amada por ele com o mesmo ardor!... À noite, ternamente enlaçados, percorriam as ruas orladas de buxo que a Lua, lá do alto, iluminava com a sua pálida luz... Oh! quantas vezes... quantas, debaixo do céu coberto de estrelas, se não haviam unido os seus lábios num longo e ardente
beijo, cujo ruído o murmúrio das folhas sacudidas pela brisa abafava discretamente...

Quarenta anos, sim, quarenta anos e no entanto parecia que ainda tinha sido ontem!...

... Entrou. No pátio em que se encontrava, os seus pés pousavam sobre os mesmos ladrilhos d’outrora e os seus olhos sobre as mesmas paredes, sobre a mesma floreira de ferro, pintada com o mesmo verde. Só os vasos e as plantas é que haviam mudado... Saiu do pátio. Tomou uma rua... aqui, uma árvore a menos, ali um muro caiado de fresco... uma cancela nova... Nada mais e haviam decorrido tantos anos... tantos...

Chegou ao fim da rua, onde existia uma mesa de pedra, rodeada por um assento também de pedra... As doze badaladas do meio -dia ressoavam lá ao longe, tangidas pelo pequeno sino da freguesia... E o som desse sino era também o mesmo... o mesmo d’outrora...

O filho do caseiro veio chamar o seu pai para ir jantar. A senhora idosa ficou só...

Ali... sim, fora ali, sentada naquele mesmo banco que, num dia lindo de Maio, num dia em que o sol brilhava, radioso, iluminando um céu azul d’anil, sem uma nuvem, que ouvira as primeiras palavras de amor, que trocara o seu primeiro beijo...

As lágrimas começaram escorregando pelas suas faces, vagarosamente... É que toda a sua vida – monstruosa fita cinematográfica ora alegre, ora triste – ia passando por diante dos seus pobres olhos apagados: primeiro a felicidade, depois a desgraça... a ruína de seu marido, a sua partida para África... a sua morte... toda uma existência, enfim, da qual nada restava... nada, a não ser, lá longe, debaixo das areias ardentes dum deserto africano, um feixe de ossos calcinados e ali, ali, à sombra dum cedro centenário, um outro feixe d’ossos coberto porém com um invólucro de pele diáfana e ressequida...

As lágrimas eram cada vez mais amargas... mais abundantes... O sol, o lindo sol de Maio, brilhava lá em cima, radioso, iluminando
um céu d’anil, sem uma nuvem... sem uma única nuvem...




in “Primeiros Contos”







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