CARTA DE EPIFÁSIO PARA A PRIMA ISABERTA
Minha querida e osculada prima Isaberta
Tenho sabido novidades da
prima e de todos os vossos por interposição da minha mana Ortôncia. Tomei
também conhecimento de que estão todos de boa compleição, o que só me deixa
aturdido de contentamento.
Infelizmente não vos tenho
podido bafejar com a minha prosa em concomitância de que nos últimos anos os
estudos me têm ocupado o tempo todo. Graças a Sta. Ingrácia terminei a 1ª
classe com grande brilhantês de avaliações e nesta inerência fui chamado para
fazer o serviço militar.
A minha mãezinha quer que
eu faça o prosseguimento dos estudos para atingir um degrau de advogado ou pelo
menos um emprego ao balcão na mercearia do sr. Ausêncio. Eu ambicionava muito
de lhe dar essa alegria mas não sei se terei envolvência para tanto peso. A ver
vamos, como dizia o cego.
No entretanto tenho
frequentado a tropa com grande satisfação e beneficência. Ainda somente cá me
capacito há três semanas e já pude auscultar a grande delicadeza que reina quer
nos oficiais superiores, quer nos oficiais inferiores, quer no resto.
Ainda esta manhã
preparava-me para compenetrar no gabinete do nosso capitão da companhia, rebati
os calcanhares e disse: «Vossa insolência, meu capitão, dá-me permissividade
para entrar?» E o capitão respondeu: «Insolente serás tu e mais toda a tua
família!». Ora isto são finezas que não se enxergam nos oficiais de mais parte
nenhuma, até porque além da tropa não há oficiais em mais parte nenhuma, se se
fizer a retiragem dos oficiais de finanças que são uma excepcionalidade.
O que tem andado a ser
alvo da minha cogitação é saber porque é que a cavalaria é uma arma. Empreendi
na problemática e cheguei à concludência que deve ser difícil andar a atirar
com os cavalos às faces do inimigo. Devia ser preciso ter umas fisgas muito
grandes para fazer a arremeçagem dos esquadrúpedes, e em polivalência,
ultrapassar a força da gravidade que é
uma coisa, não sei se a prima sabe, que todos nós temos mas os cavalos têm mais
porque são mais pesados.
Mas a minha maior
admirância e verbosidade vai para a arma de transmissões que é a arma mais
pacífica de todas. Encarne a prima na conclusidade de que se só houvesse a arma
de transmissões as guerras eram por telefone ou telegrama.
Estou com muitas saudades
de todos mas espero aproveitar uma folga, ou mesmo antes, para vos transportar
pessoalmente as minhas saudações e demonstrar-vos a minha farda que tenho trazido
tão engraxada e desentupida que até pareço um bombeiro de Cagarelos em dia de
festa.
Até que esse dia venha com
a maior proximidade, receba os meus mais hipotéticos desejos de que tudo vos
escorra pelo melhor deste vosso primo que muito vos obsequeia.
EPIFÁSIO
soldado raso
in “PÃO COM MANTEIGA” - Bernardo Brito e Cunha, Carlos Cruz, Eduarda Ferreira, José Duarte, Mário Zambujal, Orlando Neves.
Imagem: pintura de Emerson Fialho (Recife, Brasil,
1973)
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