CARTA
DE ISABERTA PARA O PRIMO EPIFÁSIO
Meu querido priminho Epifásio
Foi com grande alegria que recebi a tua cartinha
que vem escrita, como de costume, com tanto brilho que até ilustra uma pessoa.
Aliás, tu sempre foste o intelectual da família.
Cada um é para o que nasce e tu, aos 6 meses, te caiu aquele dicionário na
cabecinha que ficaste assim. Foi o destino que te quis moldar a moleirinha para
altos voos.
Já o mesmo não posso dizer do meu Bentinho que,
embora tivesse muita vocação para as letras, coitadinho, nunca conseguiu
acertar com a ortografia. Tu sempre foste muito mais dotado. Tinham vocês aí
uns 10 anitos, ainda o meu Bentinho das vogais só sabia dizer o «Aaaaa» e já tu
eras capaz de soletrar para cima de 46 letras do alfabeto.
E não é só na inteligência, tu também sempre foste
um menino de muito bom coração. Lembras-te quando ficaste cheio de pena da tia
Nafetalina nunca sair de casa e a quiseste levar a dar um passeio ao jardim na
cadeirinha de rodas? Só foi pena não te teres lembrado dos 3 andares de escada.
Coitadinha da tia Nafetalina. Ficou de tal maneira, que o médico no hospital
até disse que uma cadeirinha de rodas já não bastava. Era preciso repartir a
tia por duas cadeirinhas.
E da outra vez, quando quiseste ensinar a avozinha
a nadar em estilo mariposa no lava-loiças? Tu sempre foste muito pedagógico. A
avozinha é que não tem queda para a marinha. Tu bem quiseste começar por lhe
dar endurância de pulmão. Ela gritou tanto, coitadinha. É falta de compreensão!
Mas estava a progredir muito bem. Há mais de cincos minutos que tinha a cabeça
debaixo de água!
E o prestável que tu eras! Sempre pronto a fazer um
favor. Ás vezes até sem a gente pedir. Como naquele dia em que o Horácio estava
a mudar uma lâmpada e, para ele ver melhor, tu foste ligar o quadro. O Horácio
deu cá um salto! O que a gente se riu. Mas nervoso como ele é ficou para ali a
tremer e com os olhos esbugalhados mais de meia hora. E como tem aquele mau
feitio virou-se contra ti, pobrezinho. Pendurou-te pelas orelhas, com duas
molas, da corda da roupa. Se calhar foi por isso que ficaste com as orelhitas
assim. Mas não te deixes inferiorizar, não é por causa disso que as raparigas
deixam de olhar para ti. E hás-de ter ficado com certeza a ouvir melhor.
Fico muito contente de saber que estás a frequentar
a tropa porque aí é que um homem se faz homem. E tu, com a tua capacidade,
estás aqui estás general. Pelo menos.
Já agora gostava que me explicasses o que é aquela
coisa da lei da defesa. Sim, porque o que eu acho que devíamos ter era uma lei
do ataque para não termos que estar a depender de ninguém. Assim, não tínhamos
que estar à espera que nos atacassem para nos defendermos. Íamos logo
defender-nos para a terra dos outros, antes que eles venham defender-se para a
nossa terra. Se calhar a lei chama-se de defesa para disfarçar. Para os outros
não perceberem que nos estamos a preparar para os atacar.
Recebe muitos beijinhos, abraços e cumprimentos de
toda a família e em especial desta tua prima que te estima e que se assina
ISABERTA
in “PÃOCOMANTEIGA” - Bernardo Brito e Cunha, Carlos Cruz, Eduarda Ferreira, José Duarte, Mário Zambujal, Orlando Neves.
Imagem: pintura da artista
plástica brasileira, Camila Rahal
Sem comentários:
Enviar um comentário