TEIXEIRA DE PASCOAES
(Amarante, Portugal, 1877 – 1952)
Poeta,
escritor, filósofo
***
O HOMEM PRIMITIVO MODERNO
Reparai num homem civilizado, rico,
inteligente e feliz; olhai-o bem; tirai-lhe o chapéu alto, o casaco, as botas
de verniz; despi-o, enfim: vereis a miséria da carne tentando um feroz regresso
às formas caricatas do orogotango inicial.
Ide mais longe; penetrai-lhe o esqueleto, atravessai-lhe as entranhas: vereis
então a maior das pobrezas, a miséria absoluta, a ausência de alma.
Sim: conforme a alma vai desaparecendo, o corpo vai-se sumindo e, apagando nas
indecisas, grosseiras formas originárias. Por cada sentimento que morre, o
cóccix aumenta um elo.
As criaturas de que se compõe a parte dominante da sociedade, estão já mais
próximas do macaco do que do homem. As abas da casaca são feitas para encobrir
os primeiros movimentos comprometedores da cauda... a bota de verniz tenta
apertar e reduzir o pé que principia a prolongar-se assustadoramente. A luva
realiza, nas mãos, o mesmo papel hipócrita...
Continuai na vossa análise do homem civilizado que parou agora, além, em frente
duma vitrine de ourives, atraído, como os moscardos, pelo fulgor dos
brilhantes, das esmeraldas, dos rubis, dos topázios, de todas as pedras, enfim,
que o homem não pode atirar ao seu semelhante.
Olhai-o bem; a primeira coisa que nos fere é a hostilidade que
se exala de toda a sua fisionomia. Tudo nele é forçado, contrafeito,
artificial; o colarinho alto esgana-o sem piedade; o vidro do monóculo
contrai-lhe o rosto aflitivamente; o bigode parece conservar-se bem torcido e
no seu lugar à custa de mil sacrifícios; os pés gritam asfixiados dentro das
botas elegantes; os seus cabelos tombam para nunca mais se erguerem, sob o peso
caricato do chapéu alto, torre de ridículo, tudo negro de chaminé, por onde sai
o fumo das ideias em combustão!...
in "A Saudade e o Saudosismo"
in "A Saudade e o Saudosismo"
Imagem: Teixeira de Pascoaes por
Ana Paula Lopes
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