Rachel de Queiroz nasceu em Fortaleza, Brasil. (1910-2003)
Escritora, romancista, tradutora, jornalista, cronista e dramaturga
brasileira, destacou-se na ficção social nordestina.
Com vinte anos de idade, publicou o romance “O Quinze”, no qual narrou os
horrores da grande seca de 1915.
Trabalhou na Comissão dos Direitos Humanos da ONU.
Foi a primeira mulher a ingressar na Academia Brasileira de Letras e a
ser galardoada com o Prémio Camões.
Em 1994, entrou para a Academia Cearense de Letras.
Em 1998, escreveu uma autobiografia intitulada “Tantos Anos”.
Excertos do livro “O Brasileiro Perplexo”:
A Arte de Ser Avó
“Netos são como heranças: você os ganha sem merecer. Sem ter feito nada
para isso, de repente lhe caem do céu. É, como dizem os ingleses, um ato de
Deus.
Sem se passarem as penas do amor, sem os compromissos do matrimónio,
sem as dores da maternidade. E não se trata de um filho apenas suposto, como o
filho adotado: o neto é realmente o sangue do seu sangue, filho de filho, mais
filho que o filho mesmo...
Quarenta anos, quarenta e cinco... Você sente, obscuramente, nos seus
ossos, que o tempo passou mais depressa do que esperava. Não a incomoda
envelhecer, é claro. A velhice tem as suas alegrias, as suas compensações - todos
dizem isso embora você, pessoalmente, ainda não as tenha descoberto - mas
acredita.
Todavia, também obscuramente,
também sentida nos seus ossos, às vezes lhe dá aquela nostalgia da mocidade.
Não de amores nem de paixões: a doçura da meia-idade não lhe exige essas
efervescências.
A saudade é de alguma coisa que você tinha e lhe fugiu sutilmente
junto com a mocidade. Bracinhos de criança no seu pescoço. Choro de criança. O
tumulto da presença infantil ao seu redor. Meu Deus, para onde foram as suas
crianças? Naqueles adultos cheios de problemas que hoje são os filhos, que têm
sogro e sogra, cônjuge, emprego, apartamento a prestações, você não encontra de
modo nenhum as suas crianças perdidas. São homens e mulheres - não são mais
aqueles que você recorda. (…)
(…) E então, um belo dia, sem que lhe fosse imposta nenhuma das
agonias da gestação ou do parto, o doutor lhe põe nos braços um menino.
Completamente grátis - nisso é que está a maravilha. Sem dores, sem choro,
aquela criancinha da sua raça, da qual você morria de saudades, símbolo ou
penhor da mocidade perdida. Pois aquela criancinha, longe de ser um estranho, é
um menino seu que lhe é "devolvido".
E o espantoso é que todos lhe reconhecem o seu direito de o amar com
extravagância; ao contrário, causaria escândalo e decepção se você não o
acolhesse imediatamente com todo aquele amor recalcado que há anos se
acumulava, desdenhado, no seu coração.(…)
(…) Até as coisas negativas se viram em alegrias quando se intrometem
entre avó e neto: o bibelô de estimação que se quebrou porque o menininho -
involuntariamente! - bateu com a bola nele. Está quebrado e remendado, mas
enriquecido com preciosas recordações: os cacos na mãozinha, os olhos
arregalados, o beiço pronto para o choro; e depois o sorriso malandro e
aliviado porque "ninguém" se zangou, o culpado foi a bola mesma, não
foi, Vó?
Era um simples boneco que custou caro. Hoje é relíquia: não tem
dinheiro que pague...”
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