sábado, 11 de maio de 2019

FERNANDO DACOSTA – Estalidos de Madeira - Criadores de gado




FERNANDO DACOSTA
(Caxito, Angola, 1940)
Escritor, jornalista

***

ESTALIDOS DE MADEIRA - CRIADORES DE GADO


As divisões da casa onde Natália Correia viveu e morreu eram harmoniosas, amplas, quinto andar sóbrio, sólido, paredes e decoração espessas, paralelo à Avenida da Liberdade, junto ao Marquês de Pombal, em Lisboa.

Ecos de vozes no exterior, estalidos de madeiras no interior, reposteiros de veludo, estantes de vibrações, objectos de memórias, davam-lhe uma sedução inesquecível – a da passagem do tempo, da finitude.

«Um dia vim aqui visitar uns amigos e a sua atmosfera atraiu-me logo», conta-me. «Eles foram-se embora e este espaço esteve muito tempo devoluto, como que à espera de eu me casar e o alugar.»

Casou-se e alugou-o. Deixou o andar onde residia com a mãe, a irmã, uma criada, a menina Esmeralda, Vera Lagoa e o filho, e mudou-se.

Hóspede e amigo da mãe, Cardoso Mata, um bibliófilo afamado, ceder-lhe-ia a sua gigantesca biblioteca (avaliada em mais de dez mil contos na época), que Natália compraria e enriqueceria imparavelmente.

O centro da casa situava-se na zona de estar (biblioteca, escritório, área de comer, de receber, de festejar, de preguiçar), espaço grandioso forrado a livros, a quadros, a fotos, a referências, a recordações, a símbolos, mesa gigantesca ao centro, mármore negro, pés esculpidos de oiro, tinteiro de cobre, candeeiro de haste, poltronas de rebordos, televisão sem som, telefone sem fios, recordações sem negrumes.

Nele estiveram vultos universais, Henry Miller, Ionesco, Claude Roi, Michaux, nele representou-se Sartre (clandestinamente) pela primeira vez em Portugal.

A sua peça Huie Clos, proibida pela Censura, foi traduzida por Natália Correia e, com encenação de Carlos Wallenstein, representada em casa da poeta – que a protagonizou.

Assistiram-lhe, entre outros, Almada Negreiros, Urbano Tavares Rodrigues, Sophia de Mello Breyner, Francisco Sousa Tavares, Fernando Amaro, Augusto de Figueiredo, Isabel Meirelles, Isabel da Nóbrega, Gaspar Simões, Maria Germana Tânger e Martins Correia. Os jornais da época noticiaram com ênfase o acontecimento, considerado um marco na vida cultural de então.

Franjas mais empenhadas no neo-realismo, a grande escola então dominante, criticam-na acidamente. Natália riposta-lhes: «Os que se reclamam de criar obras literárias e artísticas tendo apenas como horizonte os pastos socioeconómicos não passam de criadores …de gado.»

«Aqui sentimo-nos ou no século XVIII ou no ano dois mil», exclamou Henry Miller depois de assistir a uma discussão sobre o amor. «Foi preciso eu vir a Portugal para encontrar uma verdadeira pitonisa», exclamou, referindo-se à anfitriã.

Na sala, as atenções convergiam para um quadro sobre a lareira, ao alto, notável auto-retrato que ela fizera; duas décadas atrás entregara-se, durante meses, exclusivamente à pintura.
«Pintei como terapia. Ferida, nessa altura, pela notícia da morte da minha mãe, que estava no Brasil, agarrei-me, rangendo de dor, aos pincéis e fechei-me num quarto durante um ano.» 


in “O Botequim da Liberdade”

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