MÁRIO DE SÁ-CARNEIRO
(Lisboa, Portugal,
1890 — Paris, França, 1916)
Poeta, contista
***
O CAIXÃO
... E, no meio da alegria ruidosa dessa ceia de
rapazes, a voz grave do Patrício Cruz fez -se ouvir:
Há de haver três anos, numa linda tarde de Abril,
estava eu sentado na minha varanda, lendo o jornal, quando de súbito os meus olhos
se fixaram em dois moços de fretes que, a passo regular, caminhavam conduzindo
um grande caixão forrado de vermelho.
Ao passarem por defronte de uma taberna, pararam, pousaram
o lúgubre traste e entraram no estabelecimento...
A noite vinha caindo serenamente e enquanto os dois
homens saboreavam lá dentro o ‘‘divino licor’’, o caixão jazia cá fora, à borda
do passeio...
Os transeuntes, achando o facto vulgar, nem sequer lhe
lançavam um olhar distraído... No entanto, ele, ali, na rua atravessada continuamente
por numerosos entes vivos, era como que um cartaz anunciador da morte!...
Sempre com os olhos pregados nele, pus -me a meditar
e, meditando, fantasiei um par de jovens noivos, cheios de vida, alegres, felizes,
avançando ternamente enlaçados, murmurando doces palavras d’amor, fazendo mil projectos
para o futuro e que de repente tropeçassem no hediondo monstro que, inexorável,
lhes clamaria numa gargalhada estrídula, horripilante: – ‘‘Folgai! Folgai que
eu vos
espero!...’’
Mas os dois homens haviam já saído, e, erguendo do
chão o fúnebre objecto, lá continuaram o seu caminho...
Era possível que à mesma hora, na casa habitada pelo
corpo a que esse caixão ia servir de leito eterno, estivesse uma mãe chorando
amargamente, rodeada pelos seus pobres filhos que – morto o pai – ficavam na
miséria...
Sim, era possível; mas também era possível haver
apenas, em lugar desse comovedor quadro, um ‘‘herdeiro’’ ambicioso, voraz, derramando
lágrimas hipócritas sobre o corpo ainda quente daquele que acumulara e
aferrolhara por largos anos a fortuna que finalmente lhe ia pertencer...
Impelido por uma força desconhecida, levantei -me,
fechei a janela e, sem saber como, achei -me na rua seguindo a horrível caixa vermelha!...
Tinha caminhado não sei durante quanto tempo, tinha
atravessado não sei que ruas, quando de súbito estaquei anelante e como que
paralisado: o sinistro frete entrava para o Teatro do Príncipe Real, onde na
noite seguinte se devia realizar a primeira representação do Morto -Vivo,
drama cujo segundo acto – lá dizia o cartaz – se
passava numa câmara mortuária...
Ah! ao ver tal, ao ver que esse caixão que tanto me
impressionara, que me sugerira tão sombrios pensamentos, não passava de um mesquinho
adereço de teatro, senti uma sensação igual à que sentiria se me tivessem
arremessado à cara com um balde d’água fria...
A passos vacilantes, a cambalear como um ébrio,
encaminhei--me para minha casa...
Deitei -me. Adormeci...
No outro dia, ao acordar, lembrei -me da terrível
‘‘aventura’’ da véspera, soltei uma gargalhada e, à noite... fui assistir à
‘‘primeira’’ do Morto –Vivo.
in “Primeiros Contos”
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