Vergílio
Ferreira (Gouveia, Portugal, 1916 – Sintra, Portugal, 1996).
É um dos mais importantes romancistas portugueses do século
XX.
Palavras de Vergílio
Ferreira:
“O ciúme.
Que irritante. Ele é uma expressão da avidez da propriedade. Ou da petulância
do domínio. Ou do gosto da escravização.”
A Primeira
Palavra que em toda a minha Vida me esgotou o Ser
Uma palavra. Disse-a. Amo-te - uma palavra breve.
Quantos milhões de palavras eu disse durante a vida. E ouvi. E pensei. Tudo se
desfez. Palavras sem inteira significação em si, o professor devia ter razão.
Palavras que remetiam umas para as outras e se encostavam umas às outras para
se aguentarem na sua rede aérea de sons.
Mas houve uma palavra - meu Deus. Uma
palavra que eu disse e repercutiu em ti, palavra cheia, quente de sangue,
palavra vinda das vísceras, da minha vida inteira, do universo que nela se
conglomerava, palavra total.
Todas as outras palavras estavam a mais e
dispensavam-se e eram uma articulação ridícula de sons e mobilizavam apenas a
parte mecânica de mim, a parte frágil e vã.
Palavra absoluta no entendimento profundo
do meu olhar no teu, palavra infinita como o verbo divino. Recordo-a agora -
onde está? Como se desfez? Ou não desfez mas se alterou e resfriou e absorveu
apenas a fracção de mim onde estava a ternura triste, o conforto humilde, a
compaixão. Não haverá então uma palavra que perdure e me exprima todo para a
vida inteira? E não deixe de mim um recanto oculto que não venha à sua chamada
e vibre nela desde os mais finos filamentos de si?
Uma palavra. Recupero-a
agora na minha imaginação doente. Amo-te. Na intimidade exclusiva e ciumenta do
nosso olhar mútuo e encantado. Fecha-nos o lençol na claridade difusa do
amanhecer, estás perto de mim no intocável da tua doçura. Frágil de névoa.
Fímbria de sorriso e de receio, de pavor, no meu olhar embevecido.
Uma palavra.
A primeira que em toda a minha vida me esgotou o ser. A que foi tão completa e
absorvente, que tudo o mais foi um excesso na criação. Deus esgotou em mim, na
minha boca, todo o prodígio do seu poder. Ao princípio era a palavra. Eu a
soube. E nada mais houve depois dela.
Vergílio
Ferreira, in “Para Sempre”
Imagem: pintura de F. A. R. Eames
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