RAUL DE CARVALHO
(Alvito, Portugal, 1920 - Porto, 1984)
Poeta
As
memórias da infância passadas no Alentejo manifestam-se em todos os seus livros
de cunho autobiográfico. Chegou a Lisboa na década de 40 e tornou-se
frequentador do café Martinho da Arcada, contactando com personalidades do meio
literário.
Preocupado
com a condição dos mais desfavorecidos, assumiu algumas afinidades com os
neo-realistas. Conjugou esta preocupação com a aprendizagem de uma liberdade
surrealista.
in” Instituto Camões” (excerto)
***
Invocação
Ao
murmúrio dos leitos vegetais,
À
esbelta finura das espigas,
Á
frouxidão dos seios despegados,
Ao
sorriso de carne e de tabaco,
À
rosa negra que os velhos aproveitam
Imóvel,
pendurada à cabeceira,
E
ao linho, ao linho, à brancura do linho,
Ao
teu cabelo crespo e de veludo,
Ao
vento, amigo vento, que o enfeita
De
medronhos, de gosto a serra e vale,
A
amoras maduras, riso fresco,
Um
púcaro de leite ao rés da aurora,
Um banho seminu no rio límpido.
Contigo
eu posso abandonar o mundo.
Damos
as mãos - ou nem isso - e sabemos
Que
de um ao outro vai correndo um rio
De natural e puro entendimento.
Se
calha que adormeças, sou eu quem
Vela
por ti bebendo-te nos olhos.
E
o anjo que ficou desde criança
Brinca através do sono e da folhagem.
Contigo,
juntos, vamos descobrir
Os
medos, os mistérios, o invisível.
Vamos
voltar a ser heróis e castos
E a ter dezoito anos - é possível!
Quero
que venhas, pela noite, à hora
Em
que as estrelas se debruçam, alto,
Em
que os peixes, curiosos, se aproximam
Da linha de água, para ver a lua.
Quero
que venhas num caudal de espuma,
No
meio das algas, lentidão submersa,
E
que tragas nos lábios a canção
Dos ciganos azuis de Andaluzia.
Quero
que subas os degraus da noite,
Quero
que ponhas devagar os pés
Neste
leito de aroma e maresia
Que sabe aos quatro ventos do convés.
Que
tragas uma âncora suspensa
Como
medalha de santa ou de madrinha,
E
que a primeira boca que te beije
Em terra, seja a minha, seja a minha!