quarta-feira, 3 de janeiro de 2018

ÁLVARO SALEMA – Poesia e estilo


ÁLVARO SALEMA
(Viana do Castelo, Portugal, 1914 - 1991)

Professor, ensaísta e crítico literário

Salema foi uma figura da maior importância na vida intelectual portuguesa, a partir dos anos 40. Professor e crítico literário, foi um escrupuloso cultivador de uma ética pública de grande rigor, que o levava a um auto-apagamento que acabou por afetar a visibilidade do lugar que lhe é devido na história cultural de Portugal.

A política era, para ele, um espaço de exercício de serviço à comunidade, pelo que alimentava uma exigência que o tornava quase intolerante perante os que entendia que dela apenas se serviam. Com um intocável currículo na luta pela democracia,  ao tempo em que era arriscado assumi-la como objetivo, foi preso e perseguido. Nunca procurou cargos ou prebendas, alimentando mesmo um cáustico desprezo por quantos viviam nessa obsessão.


in” duas ou três coisas” -  notas pouco diárias de Francisco Seixas da Costa

 ***

 Poesia e  estilo

Quando se procura, em arte literária, uma definição de estilo e uma ordem correspondente de exemplificações, é em regra ao romance ou à obra de pensamento artisticamente apresentada que vão procurar-se os sólidos fundamentos. 

O que há de pessoal e característico no movimento do espírito que conduz à obra de arte, o sentido de selecção nas palavras, nas imagens, na construção da frase ou no traçado das ideias em jogo original, afigura-se (e talvez seja, na verdade) mais fácil de encontrar na obra cm que a ordenação discursiva é mais directamente dada, como o romance ou o ensaio, do que na poesia, com as suas inevitáveis evasões ao processo da análise. E, todavia, como arte mais pura da palavra e mais livre e completa expressão de vida interior, é na poesia que a exigência de estilo se impõe mais fortemente para que seja perdurável e possa sobreviver à evolução do gosto literário.

(…)

Sem estilo e sem unidade de estilo toda obra de arte é um precário artifício, uma vã fantasia, estética e humanamente inútil, uma triste e indigente expressão da verdade interior ou da realidade visível. E se o cuidado exclusivo da forma dissolve a criação artística num bizantinismo de arabesco subalterno, o desprezo do estilo, que é a abdicação do próprio fundamento da arte como transfiguração do real, implica a antecipada desistência do que permite à criação artística influir, comunicar e durar no coração e na inteligência dos homens. 

A harmonia na composição, o efeito penetrante das palavras ou das imagens, a coerência e o movimento consequente nas ideias ou nos sentimentos traduzidos, o ritmo e a música verbal, a expressão sedutora e a irradiação sugestiva da palavra, podem ser, em maior ou menor medida, relegados para segundo plano numa passagem transitória da obra de arte e, especialmente, da poesia. Mas quando essas condições falham simultaneamente e em todo o transcurso da criação, a obra resultará inevitavelmente falhada e medíocre, por muito defensáveis que sejam, em qualquer outro plano de interesses, os objectivos que a ditaram.

(…)

Uma trivialidade, por exemplo, pode constituir matéria de poesia – mas quando se traduz nela o que contiver de grande para a sensibilidade ou a inteligência, o que representar de profundo como indício das mais profundas verdades das almas, e não quando se reduz, por incapacidade engrandecedora do poeta ou por absurdo sentido de um pretenso realismo, à sua esvaziada condição de trivialidade. Como o «capote» de Gogol na ficção em prosa ou o «par de botas» de Van Gogh na pintura, qualquer vulgaridade pode constituir matéria poética empolgante numa criação em verso; mas para isso não lhe bastará a intenção - porque lhe será indispensável o estilo.

(…)

E só quando se conquistou e se possui o estilo poderá então desprezar-se, pelo menos nos seus aspectos bizantinos e especiosos, essa faceta complementar que é a forma, como moldura meramente sonora da totalidade da expressão poética. Não será de outro modo que os poetas de hoje e os que querem ser os poetas de amanhã poderão construir a poesia nova para o homem novo dos tempos que nascem.




in “Árvore – folhas de poesia” - 1951



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