LUÍSA DACOSTA
(Vila Real, Portugal, 1927 – Matosinhos,
2015)
Escritora
***
Comboio
Comboio
II
Jogam-se as cartas com um baralho sebento e avinhado. Os parceiros
enfrentam-se resolutos, confiantes na sorte, pesando mentalmente os cachos
compactos que rodeiam o adversário.
Noutro grupo, um homem (meu Deus, como são
inesperados os pequenos funcionários!) conta aos companheiros de sempre o
«Romeu e Julieta», que acabou de ver no cinema de bairro. Deleita-se na
descrição do céu estrelado, do amanhecer, e é notável o seu realismo ao encarnar
Julieta na cena final (pobre múmia de cachecol desbotado, esquecida que o
sobretudo lhe começa a rarear nos cotovelos!).
A luz do tecto toma uma cor esverdeada de expectoração ao derramar-se
pela fealdade do compartimento - amálgama de sujidade, cestos e cascas de
tremoços. Atado à perna dum banco, viaja um cão, que de vez em quando geme. O
seu gemido é acompanhado por um olhar (e nisto consiste a tragédia) humano,
mais humano do que o dos homens empastados de vinho, amargura e vida difícil.
Lá for a noite. Por vezes luzes isoladas, em breve desaparecidas
para sempre. A todas a locomotiva grita o seu adeus, que perfura a escuridão
corno ronco impotente de pavão solitário.
Ao fundo do compartimento, o actor que se recusa a representar o
seu papel. Trata-se dum adolescente loiro semelhante a um fruto dourado entre
hortaliças podres. Não, ele não renunciará. Não será como esses. Vencerá a
vida, ela cederá ao seu amplexo viril com êxtase virgem de mulher possuída pela
primeira vez. Os seus olhos tornam-se duros, alheios, fixos. O lábio inferior
recurva-se-lhe de decisão e sensualidade, como flor estranha, a um sol
tropical.
Entretanto o compartimento esvaziou-se. Um a um os grupos foram
ficando pelas estações (a maior parte eram empregados do caminho de ferro, que
num hábito de todos os dias fazem a mesma viagem).
Os poucos que ficaram
cabeceiam e adormecem embrulhados em modorra e no frio da noite - que entra
pelas bandeiras sem vidros das janelas. Dos lábios entreabertos do vagabundo
(partirá para a Índia no próximo barco) solta-se um fio de saliva, que faz um
regato e uma poçazinha brilhante na gola do seu casaco preto e ensebado.
28 de Fevereiro de 1951 (entre o Porto e Régua).
in “Árvore” –
Folhas de Poesia –1953