LUÍSA DACOSTA
(Vila Real, Portugal, 1927 – Matosinhos,
2015)
Escritora
***
Comboio
I
O compartimento não está cheio. No banco do fundo, junto da porta
que dá para o corredor, o homem que sabe tudo (explica como os nitratos e o
húmus são as bases do crescimento das plantas), e que tem amigos em toda a
parte. À janela dois namorados.
O rio aperta os montes nas suas anilhas amarelas de animal
putrefacto. As vezes a primavera faz um aceno- uma árvore em flor (macieira?,
pereira?). «Na minha terra» «quando era pequeno», dizem um ao outro os
namorados - como se não estivessem a dizer banalidades, mas a soltar pombas em
pleno azul. O homem que sabe tudo desenrola-se em frases lapidares de
fonógrafo, perfeitamente seguro de deslumbrar o amigo ocasional (tinha escrito
um artigo de fundo num jornal diário - sobre fosfatos?, sobre nitratos?).
Para
além da janela uma mata sombria (a história da Bela Adormecida surge inevitavelmente).
Seguem-se as tangerineiras- as árvores da nossa infância - com as maçãzinhas de
ouro (o sonho) espreitando das folhas verdes da realidade. «Aquela casa deve
ter uma linda vista», dizia o namorado projectando a sua alma sedenta de beleza
(quem sabe se até de amor?) na paisagem.
Eis a chuva. Absolutamente necessária
para impedir que as coisas se partam, ou fiquem demasiado tensas. Grossa,
sonora, aguando o quadro que o caixilho da janela emoldura. Um barco, encalhado
na margem com o mastro hirto deserto de vela, balança-se numa indolência morta.
E agora o túnel, como uma mão negra, impaciente, apagando a visão que é
impossível reter.
Entrou um casal. A burguesia ressalta das penas pretas solenes e
luzidias do chapéu da esposa. Lá fora tudo mudou. As coisas ganham um ar
ajardinado. Os montes perdem altura - arredondam-se como seios. Por toda a
parte caminhos, que levam a minúsculas casas de bonecas. Uma paisagem boa para
bordar a ponto de cruz. Uma casa. Uma árvore. Um caminho.
19 de Fevereiro de 1951 (entre Régua e Vila Meã)
in “Árvore” –
Folhas de Poesia –1953
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