quarta-feira, 21 de fevereiro de 2018

LUÍSA DACOSTA – Comboio (I)



LUÍSA DACOSTA
(Vila Real, Portugal, 1927 – Matosinhos, 2015)
Escritora

***

Comboio

I

O compartimento não está cheio. No banco do fundo, junto da porta que dá para o corredor, o homem que sabe tudo (explica como os nitratos e o húmus são as bases do crescimento das plantas), e que tem amigos em toda a parte. À janela dois namorados.

O rio aperta os montes nas suas anilhas amarelas de animal putrefacto. As vezes a primavera faz um aceno- uma árvore em flor (macieira?, pereira?). «Na minha terra» «quando era pequeno», dizem um ao outro os namorados - como se não estivessem a dizer banalidades, mas a soltar pombas em pleno azul. O homem que sabe tudo desenrola-se em frases lapidares de fonógrafo, perfeitamente seguro de deslumbrar o amigo ocasional (tinha escrito um artigo de fundo num jornal diário - sobre fosfatos?, sobre nitratos?). 

Para além da janela uma mata sombria (a história da Bela Adormecida surge inevitavelmente). Seguem-se as tangerineiras- as árvores da nossa infância - com as maçãzinhas de ouro (o sonho) espreitando das folhas verdes da realidade. «Aquela casa deve ter uma linda vista», dizia o namorado projectando a sua alma sedenta de beleza (quem sabe se até de amor?) na paisagem. 

Eis a chuva. Absolutamente necessária para impedir que as coisas se partam, ou fiquem demasiado tensas. Grossa, sonora, aguando o quadro que o caixilho da janela emoldura. Um barco, encalhado na margem com o mastro hirto deserto de vela, balança-se numa indolência morta. E agora o túnel, como uma mão negra, impaciente, apagando a visão que é impossível reter.

Entrou um casal. A burguesia ressalta das penas pretas solenes e luzidias do chapéu da esposa. Lá fora tudo mudou. As coisas ganham um ar ajardinado. Os montes perdem altura - arredondam-se como seios. Por toda a parte caminhos, que levam a minúsculas casas de bonecas. Uma paisagem boa para bordar a ponto de cruz. Uma casa. Uma árvore. Um caminho.


19 de Fevereiro  de 1951 (entre Régua e Vila Meã)


in “Árvore” – Folhas de Poesia –1953




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