JORGE SILVA MELO
(Lisboa, 7 de Agosto de 1948)
Dramaturgo, encenador, tradutor, realizador de
cinema
***
Aos
esquecidos da literatura
Sei
que há tratados, colóquios, viagens que não fiz. Mas eu, que primeiro li Joyce
no francês de Larbaud, comecei Brecht pela Ilse Losa, me embrenhei em Tretiakov
em italiano, descobri Melville pela mão segura do Alfredo Margarido (e de
Pavese…), Kleist por Gracq, e ainda agora tanto devo a Alessandra Serra
traduzindo Pinter para a Einaudi, acho que não há gratidão, não há carinho para
com os tradutores, gente que de perto fui conhecendo quando não havia word count e se batia à máquina contando
as linhas que ditavam o salário. (As longas tardes na Mata da Caparica, com a
Luiza, o Manuel João e o Diniz brincando, e nós a contar sílabas e cesuras de
alexandrinos, Roussel ou Sade.)
E
há um lugar na Literatura para estas angustiantes escolhas, estas transversais
indecisões, estas insuficiências, bloqueios, estas súbitas revelações. E aquilo
que sinto, qualquer que seja a língua para que se verte, é que os escolhos da
tradução, a sua rudeza, a sua via aproximativa, são muitas vezes – tantas vezes
– clarificadores. A quem me diz “não leio traduções “ só me apetece responder:
“só leio traduções”. Como eu gostava de, em volume da Penguin, ler Garrett, como
já li Puschkin.
Quando
é poesia, já se reconhece ao tradutor – Ungaretti ou Sena, Cernuda ou Celan –
um lugar no alto império das letras. Mas eu gosto é de Leyguarda Ferreira que
tanto Scott traduziu, gosto de Aurora Rodrigues a quem devo Hawthorne, Aida Almeida
Pêra, António Ruas, António Neves Pedro (admirável Stephen Crane, na Ulisseia,
em 1960). E Mário Domingues, com quem li um inventivo Tom Jones “adaptado” de
Fielding. Nomes que desaparecerão quando se esboroar a traça das editoras para
quem trabalhavam depois das aulas, ao fechar a porta de casa aos explicandos,
depois do jantar, na saleta com braseira, noite fora.
Não
é só por permitir o acesso a outros mundos que o trabalho do tradutor me encanta,
me desilude ou surpreende. É pelas muitas escolhas com que o original se refaz na
gaze das línguas, é pelo desenho que se entrevê, pelo risco carimbado. Como se a
língua original fosse a marca de água do texto.
E
daqui ergo a taça a esta literatura subterrânea, incerta, aproximativa, literatura
nascida dos outros livros. E deste meu canto vos saúdo e agradeço, tradutores (e
atenção: mesmo aos maus me dirijo, aos péssimos, pois também deles é feito o Reino
dos Livros).
19 de Outubro de 2002
in “Século Passado”
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