A INQUISIÇÃO EM PORTUGAL (IV)
Um miserável blasfemo foi
arrastado para o adro, assassinado, e queimado o seu cadáver. O tumulto atraíra
maior concurso de povo, cujo fanatismo um frade excitava com violentas
declamações. Dois outros frades, um com uma cruz, outro com um crucifixo
arvorado, saíram então do mosteiro, bradando heresia, heresia!
O rugido do tigre popular não tardou a reboar por
toda a cidade. As marinhagens de muitos navios estrangeiros no rio vieram em
breve associar-se à plebe amotinada. Seguiu-se um longo drama de anarquia. Os
cristãos-novos que giravam pelas ruas desprevenidos eram mortos ou malferidos e
arrastados, às vezes semivivos, para as fogueiras que rapidamente se tinham
armado, tanto no Rossio como nas ribeiras do Tejo.
O juiz do crime, que com os
seus oficiais pretendera conter o motim, apedrejado e perseguido, teria sido
queimado com a própria habitação, se um raio de piedade não houvera
momentaneamente tocado o coração do tropel furioso que o perseguia, ao verem as
lágrimas da sua esposa, que, desgrenhada, implorava piedade. Os dois frades
enfureciam as turbas com os seus brados, e guiavam-nas com actividade infernal
naquele tremendo labor. O grito de revolta era: Queimai-os!
Quantos cristãos-novos
encontravam arrastavam-nos pelas ruas e iam lançá-los nas fogueiras da Ribeira
e do Rossio. Nesta praça foram queimadas nessa tarde trezentas pessoas, e às
vezes, num e noutro lugar, ardiam a um tempo grupos de quinze ou vinte
indivíduos. A ebriedade daquele bando de canibais não se desvaneceu com o
repouso da noite.
Na segunda-feira as cenas da véspera repetiram-se com maior
violência, e a crueldade da plebe, incitada pelos frades, revestiu-se de formas
ainda mais hediondas.
Acima de quinhentas pessoas tinham perecido na véspera:
neste dia passaram de mil. Segundo o costume, ao fanatismo tinham vindo
associar-se todas as ruins paixões, o ódio, a vingança covarde, a calúnia, a
luxúria, o roubo. As casas dos cristãos-novos acometidas e entradas. Metiam a
ferro homens, mulheres e velhos: as crianças arrancavam-nas dos peitos das mães
e, pegando-lhes pelos pés, esmagavam-lhe o crânio nas paredes dos aposentos.
Depois saqueavam tudo.
Até terça-feira à tarde o
número dos mortos orçava por dois mil indivíduos.
in “História da Origem e Estabelecimento da Inquisição
em Portugal” - Alexandre Herculano
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