HAROLDO DE CAMPOS
(São Paulo, Brasil, 1929 - 2003)
Poeta,
tradutor
***
O NEOLIBERAL
1.
o
neoliberal
neolibera:
de
tanto neoliberar
o
neoliberal
neolibera-se
de neoliberar
tudo
aquilo que não seja neo /(leo) libérrimo:
o
livre quinhão do leão
neolibera
a corvéia da ovelha
2.
o
neoliberal
neodelibera
o
que neoliberar
para
os não-neoliberados:
o
labéu?
o
libelo?
a
libré do lacaio?
a
argola do galé?
o
ventre-livre?
a
morte-livre?
a bóia-rala?
o
prato raso?
a
comunhão do atraso?
a
ex-comunhão dos ex-clusos?
o
amanhã sem fé?
o
café requentado?
a
queda em parafuso?
o
pé de chinelo?
o
pé no chão?
o
bicho de pé?
a ração da ralé?
3.
no
céu neon
do
neoliberal
anjos-yuppies
bochechas
cor-de-bife
privatizam
a
rosácea do paraíso
de
dante
enquanto
lancham
fast-food
e
super
(visionários)
visam
com
olho magnânimo
as
bandas
(flutuantes)
do
câmbio:
enquanto
o não
-neoliberado
come
pão
com
salame
(quando
come)
ele
dorme
sonhando
com
torneiras de ouro
e
a hidrobanheira cor
de
âmbar
de
sua neo-
mansão em miami
4.
o
centro e a direita
(des)conversam
sobre
o social
(questão
de polícia):
o
desemprego é um mal
conjuntural
(conjetural)
pois
no céu da estatís- tica o futuro
se
decide pela lei
dos grandes números
5.
o
neoliberal
sonha
um mundo higiénico:
um
ecúmeno de ecónomos
de
economistas e atuários
de
jogadores na bolsa
de
gerentes
de
supermercado
de capitães de indústria
e
latifundiários
de
banqueiros
-banquiplenos
ou
banquirrotos
(que
importa?
desde
que circule
auto-regulante
o
necessário
plusvalioso
numerário)
um
mundo executivo
de
mega-empresários
duros
e puros
mós
sem dó
mais
atentos ao lucro
que
ao salário
solitários
(no câncer)
antes
que solidários:
um
mundo onde deus
não
jogue dados
e
onde tudo dure para sempre
e
sempremente nada mude
um
confortável
estável
confiável
mundo contábil
6.
a
contramundo o
mundo-não
-mundo
cão-
dos deserdados:
o
anti-higiénico
gueto
dos
sem-saída
dos
excluídos pelo
deus-sistema
cana
esmagada
pela
moenda
pela
roda dentada
dos
enjeitados:
um
mundo-pêsames
de
pequenos
cidadãos-menos
de
gente-gado
de
civis
subservis
de
povo-ônus
que
não tem lugar marcado
no
campo do possível
da
economia de mercado
(onde mercúrio serve ao
deus /mamonas)
7.
o
neoliberal
sonha
um admirável
mundo
fixo
de
argentários e multinacionais
terratenentes
terrapotentes /coronéis políticos milenaristas (cooptados) /do perpétuo status
quo:
um
mundo privé
palácio
de cristal
à
prova de balas:
bunker blau
durando
para sempre-festa /estática (ainda que se sustente sobre fictas
palafitas
e
estas sobre uma lata
de lixo)
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