FRANZ KAFKA
(República
Checa, 1883 - Áustria, 1924)
Escritor
***
CARTA AO PAI
Obras editada
postumamente, onde o escritor revela o seu talento para entender a alma humana,
as causas da relação inquietante com o seu pai, comerciante judeu, que sempre
impôs aos filhos a sua visão do mundo. As suas emoções em relação ao pai
oscilavam entre o ódio e a admiração. Esta extensa carta com mais de cem
páginas manuscritas e que nunca foi enviada ao seu destinatário, é uma obra de
arte, sobretudo na análise do relacionamento entre pais e filhos:
Querido
pai
“Perguntaste-me há pouco tempo por que razão digo que tenho
medo de ti. Como de costume, não soube o que responder, em parte precisamente
devido ao medo que sinto de ti, mas também porque para fundamentar esse medo
seria preciso entrar em muitos pormenores, que nem de longe conseguiria ter
presentes ao falar. E se tento por este meio responder-te por escrito, o
resultado continuará a ser muito incompleto, porque também ao escrever o medo e
as suas consequências perturbam a comunicação contigo, e a escala da matéria se
situa muito para além da minha memória e do meu entendimento.
(…) Para
ti, as coisas colocavam-se mais ou menos assim: toda a tua vida trabalhaste
muito, sacrificaste tudo pelos teus filhos, especialmente por mim, e por isso
“vivi à grande”, tive toda a liberdade de estudar o que quis, nunca tive
preocupações materiais nem de qualquer outra ordem.
(…) Eu
era uma criança assustadiça, e apesar disso também teimosa, como são em geral
as crianças. É verdade que a mãe me mimou, mas não acho que fosse uma criança
especialmente difícil.
(…) Tu,
só sabes tratar uma criança à luz da tua própria natureza, com força, barulho e
cólera, e neste caso até achavas que era o método mais adequado, já que querias
fazer de mim um rapaz cheio de força e audácia.
(…)
Lembro-me, por exemplo, de quando nos despíamos juntos numa cabine. Eu, magro,
fraco, esguio; tu, forte, alto, largo. Logo na cabine, já me sentia uma figura
lamentável, não apenas perante ti, mas perante o mundo inteiro, porque tu eras
para mim a medida de todas as coisas.
(…)
Bastava eu mostrar algum interesse por alguém – coisa que, dada a minha
natureza, não acontecia muitas vezes – para tu intervires brutalmente, sem
querer saber dos meus sentimentos e sem respeitar a minha opinião, com
injúrias, calúnias, humilhações.
(…)
Como tinhas sempre muita fome e um gosto especial pela comida, engolias tudo
depressa, quente e em grandes bocados, e eu, pequeno, tinha de me apressar,
fazia-se um silêncio de cortar à faca, só interrompido por exclamações tuas:
“Primeiro come-se, depois fala-se.”
(…) Era
proibido roer os ossos – mas tu roías. Era proibido sorver o vinagre – mas tu
sorvias.
(…) Por
favor, pai, vê se me entendes bem: tudo isto não passaria de pequenas coisas
insignificantes, que só se tornavam humilhantes para mim porque tu, o homem que
era o meu exemplo maior, não obedecias aos mandamentos que me obrigavas a mim a
seguir à risca.
(…)
Reconheço que temos os nossos conflitos, mas há dois tipos de combate. O
cavalheirismo, em que se defrontam dois adversários independentes, e cada um
fica só, ganhando ou perdendo sozinho. E o combate do parasita, que não só pica
como suga o sangue do outro para sobreviver. É o que se passa com o soldado
profissional e contigo. És incapaz de viver, e para te poderes instalar sem
preocupações, confortavelmente e sem remorsos, provas que fui eu quem te tirei
a capacidade de viver e a meti no bolso. Que te importa agora se és ou não
capaz de viver, se a responsabilidade é minha! ”
Franz
Kafka, in “Carta ao Pai” (excertos)
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