MIGUEL TORGA
(São Martinho de Anta, Portugal, 1907 - Coimbra, 1995)
Poeta,
escritor
***
O ENCANTO DA VIDA
Todas as noites acordado
até desoras, à espera da última cena de pancadaria num jogo de futebol, do
último insulto num debate parlamentar, do último discurso demagógico num
comício eleitoral, da última pirueta dum cabotino entrevistado, da última farsa
no palco internacional. Crucificações masoquistas, que a prudência desaconselha
e a imprudência impõe. Vou deste mundo farto de o conhecer e faminto de o
descobrir.
Mas não há perspicácia,
nem constância de atenção capazes de lhe prefigurar os imprevistos. O que
acontece hoje excede sempre o que sucedeu ontem. A violência, o facciosismo, a
ambição de poder, a crueldade e o exibicionismo não têm limites. Felizmente que
a abnegação, a generosidade e o altruísmo também não. E o encanto da vida é
precisamente esse: nenhum excesso nela ser previsível. Nem no mal nem no bem. E
não me canso de o verificar, de surpresa em surpresa, à luz dos acontecimentos.
Quando julgo que estou
devidamente informado sobre o amor, sobre o ódio, sobre a santidade, sobre a
perfídia, sobre as virtudes e os defeitos humanos, acabo por concluir que
soletro ainda o á-bê-cê da realidade. Cabeçudo como sou, teimo na aprendizagem.
Hoje fizeram-me a revelação surpreendente de que um avarento meu conhecido, que
durante muitos anos procedeu como tal e, como tal, o tratei sempre de pé atrás,
generosa e secretamente subsidiava um asilo de infância desvalida.
in “Diário” (1993) – (citador)
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