LIMA DE FREITAS
(Setúbal, Portugal, 1927 — Lisboa, 1998)
Pintor, desenhador, escritor
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Lima de Freitas é considerado
um “Artista Total”, com um importante percurso criativo e humanista na cultura
portuguesa contemporânea: pintor, ilustrador, ensaísta e brilhante
investigador. Foi membro fundador da CIRET em Paris, a partir de 1992 da
Comissão Consultiva junto da UNESCO para a transciplinaridade. É autor de
ensaios e livros sobre temas de semiótica visual, estética e simbologia, bem
como de inúmeros escritos sobre arte.
Fonte:
“Centro Português de Serigrafia” (excerto)
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VIEIRA
DA SILVA E OS SERES DOS ESPELHOS (X)
(continuação)
Conta Jorge Luiz Borges, no seu «Manual de zoologia
fantástica», que em tempos muito recuados, na velha China, «o mundo dos
espelhos e o mundo dos homens comunicavam um com o outro e eram totalmente
diferentes. Ambos os reinos viviam em paz; entrava-se e saía-se pelos espelhos.
Uma noite as gentes dos espelhos invadiram a terra. A sua força era grande,
mas, ao cabo de sangrentas batalhas, as artes mágicas do Imperador Amarelo
prevaleceram. Rechaçou os invasores, encarcerou-os nos espelhos e impôs-lhe a
tarefa de repetir, como numa espécie de sonho, todos os actos dos homens.
Privou-os da sua força e da sua figura e reduziu-os a meros reflexos servis. Um
dia, porém, eles sacudirão essa letargia mágica.
O primeiro a despertar será o Peixe. No fundo do
espelho aperceberemos uma linha muito ténue, e a cor dessa linha será uma cor
que não se parece com nenhuma outra. Depois, irão despertando as outras formas.
Gradualmente diferirão de nós, gradualmente deixarão de nos imitar. Romperão as
barreiras de vidro ou de metal e, desta vez, não serão vencidos. Como as criaturas
dos espelhos combaterão as criaturas da água.
No Yunnan não se fala de Peixe mas sim do Tigre do Espelho.
Outros entendem que antes da invasão ouviremos, vindo do fundo dos espelhos, o rumor
das armas» …
Na pintura de Vieira da Silva começa a grande revolta contra
a magia do Imperador Amarelo. Reparem bem na «Chambre à carreaux» ou no «Atelier»
ou no «Cirque»: já aí se ouve, ao fundo, o rumor das armas, distinguem-se já, confusas,
evanescentes, as palpitações, as súbitas correrias, o arfar misterioso desses seres
do outro lado do espelho.
Do outro lado? Que
digo eu?
O outro lado é este!
(Fim)
in ”Voz Visível” – Ensaios
– 1971
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