A CONVERSÃO
DE BOCAGE
Na decomposição da nossa
sociedade tradicional, Bocage é um nome que simboliza inteiramente a anarquia
intelectual e moral do espírito naturalista da Enciclopédia.
Vítima dos erros do seu
tempo, serviu-os Bocage com o fulgor da sua sátira, - com a viva intensidade do
seu temperamento de inadaptado a uma regra superior que o disciplinasse. Por
isso de Bocage não ficou para a maioria das gentes senão a lenda grosseira da
sua extravagância de frequentador de botequins.
No entanto, em Bocage
palpitava por vezes a cintilação do génio e as nossas formas poéticas
deveram-lhe aqui e além um significativo esforço de renovação literária. […]
Se a obra de génio vale,
sobretudo, pelo que contém de universal e humano, o soneto de Bocage moribundo
não tem segundo na literatura de todo o mundo. […]
A
clarividência que lhe inspirou o seu soneto célebre é a prova melhor a
invocar-se contra a lenda sectária que no-lo descreve coacto pela pressão
inquisitorial e pelos mórbidos receios religiosos do seu espírito abatido.
Bocage,
convertido e arrependido, foi mais livre na
condução da sua vontade que o Bocage dos risos demolidores e da «pavorosa
ilusão da eternidade». […]
A introspecção psíquica
que marca a culminância duma consciência, repassa linha a linha, palavra a
palavra, o arranco de Bocage agonizante:
Meu
ser evaporei na lida insana
Do
tropel das paixões que me arrastavam
Ah!
cego eu cria, ah! mísero eu sonhava
Em
mim quase imortal a essência humana.
in “Ao Princípio Era o
Verbo” – ANTÓNIO SARDINHA (Monforte, Portugal, 1887 - Elvas, 1925)
Sem comentários:
Enviar um comentário