domingo, 27 de outubro de 2019

ARMANDO CORTEZ – Carta ao Presidente da Caixa de Previdência dos Profissionais de Espectáculos




ARMANDO CORTEZ
(Lisboa, Portugal, 1928-2002)
Actor, encenador

***

CARTA AO PRESIDENTE DA CAIXA DE PREVIDÊNCIA DOS PROFISSIONAIS DE ESPECTÁCULOS - 1963


Excelentíssimo Senhor,

Com os meus melhores cumprimentos, venho junto de V. Exa. expor e solicitar o seguinte:

Há já bastante tempo tenho necessidade de duas placas dentárias para substituir um velho e desadaptado aparelho que há anos trago na boca, com prejuízo para as gengivas e restantes dentes.

Consultei para o efeito, há poucos meses, o Exmo. Sr. Dr. Oliveira Pinto, no Centro de Medicina Dentária, que estudou o trabalho de prótese a efectuar, e o orçamentou em 1.900 escudos. Como se tratava de uma verba incompatível com as minhas possibilidades financeiras, nessa mesma altura telefonei para a Caixa, a informar-me da viabilidade de me serem por ela pagas as referidas placas dentárias.
Informou-me o funcionário que então me atendeu, de que eu teria de escrever a V. Exa. uma carta, formulando esse mesmo pedido e dizendo:

- Porque razão eu desejava duas placas dentárias.
- A que se destinavam as mesmas.
- Em quanto importava o seu custo.

Passo, portanto, a esclarecer estes três importantes e nebulosos pontos:

- Desejo duas placas dentárias porque me faltam os meus próprios dentes.
- Destinam-se as mesmas a ser aplicadas, uma ao maxilar inferior, outra ao maxilar superior, para assim menos custosamente eu proceder à mastigação dos alimentos possíveis de adquirir com os meus honorários depois de deduzidos: 5,5% para a Caixa de Previdência, 1,5% para o Fundo de Desemprego e recentemente mais 1% para o imposto Profissional.

Objectarão talvez os esclarecidos Serviços dessa Caixa que eu poderia alimentar-me de papas e bolos, dispensando-me assim o luxo de ostentar dentes que não são meus. De bom grado me sujeitaria a isso, com todos os prejuízos, se não se sobrepusesse um problema de ordem profissional: é que eu sou Actor, e os dentes se me tornam indispensáveis à mecânica da articulação de sons e palavras, isto é: - à Dicção! A isto poderão ainda os mesmos esclarecidos Serviços objectar que não são os dentes tão necessários à articulação quanto eu pretendo, porque… 

Eu sei ao que os Serviços se querem referir, mas a minha formação moral e o meu sentido de camaradagem repudiam energicamente a sugestão de me propor ao ÚNICO cargo em Portugal em que um actor sem dentes pode ganhar a sua vida: o de Professor de Arte de Dizer do Conservatório Nacional. Além disso, se as coisas de facto assim se passaram durante alguns anos (pelo menos enquanto durou o meu curso), já há muito tempo que esse assunto foi revisto e resolvido por razões de ordem trófica e possivelmente didáctica.

- Importa o seu custo em 1.900 escudos, conforme documento que se junta, escrito pelo punho do Exmo. Sr. Dr. Oliveira Pinto, e que poderá em qualquer altura ser confirmado pelo Centro de Medicina Dentária, na Calçada Bento Rocha Cabral em Lisboa.

Estou informado particularmente, não sei se bem se mal, de que é hábito as Caixas de Previdência só liquidarem este género de despesas depois destas estarem pagas pelos beneficiários. Parece-me isso tão absurdo que não quero crer que assim seja. Se eu faço à minha Caixa de Previdência este pedido é porque, em função da minha profissão, acho inteiramente justo que ele me seja deferido, e por não ter eu possibilidades financeiras de arcar com essa despesa. 

Ora se eu for pagar primeiro, para depois a Caixa me pagar a mim, (para o que careceria, evidentemente, de instrumento material) passo automaticamente da situação de beneficiário à de beneficiante. Invertem-se completamente os papéis e as funções de um e de outro: passo eu a ser uma espécie de Previdência da Caixa, e não creio que a Caixa dos Profissionais de Espectáculos ou qualquer outra, esteja na situação crítica de recorrer a favores pessoais para cumprir a sua missão. 

É essa medida tomada, segundo me dizem, para obstar ao facto, que considero vergonhoso, de alguns beneficiários darem a esse dinheiro outro destino que não aquele para que ele é solicitado. Para evitar delongas, e situações insolúveis, desde já me permito sugerir a V. Exa. que os respectivos serviços dessa Caixa entrem directamente em contacto com o Centro de Medicina Dentária, e directamente tratem a liquidação do custo do aparelho, de que urgentemente necessito, pelo que solicito a possível brevidade na apreciação desta pretensão, que me permito submeter ao alto critério de V. Exa. por a achar a todos os títulos justa.

Com os protestos da minha maior consideração, tenho a honra de me subscrever,

De V. Exas.
Atentamente
Armando Cortez




in “Armando Cortez -1928-2002”




Sem comentários:

Enviar um comentário

MALMEQUER

MALMEQUER Português, ó malmequer Em que terra foste semeado? Português, ó malmequer Cada vez andas mais desfolhado Ma...