segunda-feira, 28 de outubro de 2019

NICANOR PARRA - O Túnel



NICANOR PARRA
(Chile, 1914 - 2018)
Poeta, matemático

***

O TÚNEL

Passei uma época da minha juventude em casa de umas tias
arrastou-me para isso a morte de um senhor que nunca deixou de lhes estar ligado
e cujo fantasma as molestava sem piedade
tornando-lhes a vida irrespirável.
Ao princípio mantive-me surdo aos seus telegramas
e cartas lavradas numa linguagem de outra época
prenhes de alusões mitológicas
e de nomes próprios desconhecidos para mim,
muitos dos quais pertenciam a sábios da antiguidade,
a filósofos medievais de menor coturno
ou a simples vizinhos do lugarejo em que habitavam.
Abandonar assim às boas de supetão a faculdade
rompendo com os encantos da vida galante
só para satisfazer os caprichos de três anciãs histéricas
afigurava-se-me um estorvo irreparável.
E aturar-lhes toda a infinita classe de problemas pessoais
resultava, para uma pessoa do meu carácter,
um futuro pouco lisonjeiro, uma ideia descabelada.
Mas a verdade é que abobarei quatro anos n’ O Túnel,
em comunidade com aquelas damas medonhas
quatro anos de um martírio inalterável
dos confins da manhã à noite extrema. Breve
as poucas horas de ripanço debaixo das árvores
converteram-se em semanas de fastio
em meses de angústia que dissimulava ao máximo
sob pena de despertar curiosidade em torno da minha pessoa,
e assim se passaram anos de ruína e miséria,
séculos de encarceramento vividos por uma alma
inadvertida no bojo de uma garrafa de mesa!
A minha concepção espiritualista do mundo
colocava-me ante os factos num plano de franca inferioridade:
porque eu via tudo através de um prisma
ao fundo do qual as imagens de minhas tias se entrelaçavam
com filamentos vivos, numa espécie de malha impenetrável,
que feria a minha vista, tornando-a cada vez mais ineficaz.
Um jovem de escassos recursos não se dá conta das coisas.
Às tantas vive numa campânula de vidro que se chama Arte
que se chama Luxúria, ou que evoca as leis da Ciência,
tratando de estabelecer contacto com um mundo de relações
que só existem para ele e para um reduzido grupo de amigos.
Debaixo dos efeitos de uma espécie de vapor de água
que se filtrava pelo piso da habitação
permeando a atmosfera até tudo se tornar invisível
eu passava as noites diante da minha mesa de trabalho
absorvido na prática da escrita automática.
Mas para quê aprofundar estas matérias desagradáveis -
aquelas matronas vigarizavam-me miseravelmente
com as suas falsas promessas e as suas bizarras fantasias
e as suas dores sabiamente simuladas
retiveram-me anos entre as suas redes
obrigando-me tacitamente a trabalhar para elas
em fainas de agricultura
compra e venda de animais -
até que uma noite, olhando pela fechadura,
surpreendi uma delas
- a tia paralítica! -
a caminhar lestamente sobre a ponta dos seus pés
e voltei à realidade com um sentimento dos demónios.




Tradução: António Cabrita
 



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